Klondike: A Guerra na Ucrânia (2022)

A guerra tem rosto de mulher

título original (ano)
Klondike (2022)
país
Ucrânia, Turquia
gênero
Drama, Guerra
duração
100 minutos
direção
Maryna Er Gorbach
elenco
Oksana Cherkashyna, Sergey Shadrin, Oleg Shcherbina, Oleg Shevchuk, Artur Aramyan, Evgeniy Efremov, Nadir Samedov, Anatolij Ohorodnyk
visto em
Cinemas

Era uma casa muito engraçada / Não tinha teto, não tinha nada / Ninguém podia entrar nela não / Porque na casa não tinha chão / Ninguém podia dormir na rede / Porque na casa não tinha parede.

Em primeiro lugar, vale precisar que o título brasileiro deste drama induz ao erro: apesar da referência “à” guerra da Ucrânia, com o artigo definido, não se trata do conflito em andamento atualmente, quando a Rússia segue bombardeando o país vizinho após a aproximação deste com potências ocidentais. Trata-se da guerra de 2014, situada na mesma região, quando movimentos separatistas se chocavam aos nacionalistas na zona fronteiriça. É claro que este episódio indicava as origens do que veio a acontecer em 2022, servindo de boa investigação histórica para os dias atuais. No entanto, quem espera menções a Putin e Zelensky ficará decepcionado.

No caso, a trama desta ficção gira em torno de uma casa na planície, onde vive o casal formado por Irka (Oksana Cherkashyna) e Tolik (Sergey Shadrin). Ela está grávida, próxima de dar à luz, e teme pela inclinação do marido em cooperar com as forças russas que invadiram a cidade. O homem tolera as exigências de comida e provisões e, em especial, se cala diante de um “erro” de cálculo que leva um míssil a destruir a parede da casa. O estrondo ocorre na primeira cena, orquestrada num giro de 360º lento e cuidadoso por parte da câmera, revelando todo o espaço, antes e depois da destruição.

A cineasta Maryna Er Gorbach faz deste espaço absurdo um símbolo do desastre humanitário ocorrendo na região. Da primeira à última cena, a mulher tentará tornar o lugar habitável, apesar da falta da parede. Ela luta contra a poeira, pisa sobre os destroços. No entanto, novos abalos quebram a estrutura de uma janela recém-colocada; sujam o cômodo quase limpo após tanto esforço, enquanto oficiais inimigos tomam conta do local e impõem suas regras. O lar, espaço de proteção de intimidade, se vê sequestrado pelo conflito internacional que, literalmente, invade o espaço doméstico. 

A casa será revelada apenas aos poucos: na cena inicial, será um local escuro, e sequência após sequência, ganhará novos cômodos e referências espaciais. Este cenário, misto de locação interna e externa, de casa naturalista e palco fantástico, de esconderijo e quartel-general, convém à direção de fotografia para revelar a batalha de dentro do ambiente recluso, sem precisar se aventurar pelos campos. A chegada de veículos inimigos ao longe, através do rombo na parede, possui maior efeito por deixar o espectador junto à esposa, ao invés de partir junto à ação.

Um cinema político inteligentíssimo, ciente que de seu discurso pode ser veiculado inteiramente através da linguagem cinematográfica, ao invés de diálogos e letreiros explicativos.

Klondike: A Guerra na Ucrânia (2022) surpreende especialmente pelo uso precioso dos enquadramentos, movimentos de câmera e profundidade de campo. A cineasta desenha uma coreografia difícil e rebuscada para cada imagem, porém evitando cair em mera vaidade autoral. Cada gesto da imagem, deslizando de um lado ao outro, ou efetuando um imperceptível zoom rumo ao conflito, revela algum objeto importante que se escondia fora do quadro. Em outras palavras, a estética jamais se sobrepõe ao caráter humano, nem embeleza a tragédia alheia para o olhar voyeur e cúmplice do público. 

Observamos a trama pela perspectiva desfavorável da esposa: ela pode ter o filho a qualquer momento, mas como fugir daquele lugar para um refúgio controlado pelos russos, junto ao marido do qual discorda politicamente? Afinal, porque precisaria abandonar o lar construído pela família, onde foi criada a vida inteira, devido aos caprichos de terceiros? Irka se converte numa resistência teimosa e quase fabular, recusando-se a enxergar o inevitável: uma hora, o bebê nascerá e a casa será destruída totalmente pela guerra. 

No entanto, o filme “dedicado às mulheres”, conforme atestam os letreiros finais, analisa o impacto das batalhas masculinas sobre a integridade e o corpo femininos. Oksana Cherkashyna apresenta um trabalho excepcional de composição, registrando em silêncio sua resignação face às pressões separatistas do marido, e nacionalistas do irmão mais novo, Yaryk (Oleg Shcherbina). A composição corporal da personagem grávida, que ainda carrega objetos pesados, fornece tensão por si mesma: a entrada e saída da casa pelo buraco, escorregando nos escombros e equilibrando a barriga ao levantar, representa a fragilidade humana face aos ciclos de vida e morte.

Os colegas de cena não ficam atrás em excelência dramática: cada nova figura em cena, dentre os poucos personagens disponíveis, simboliza uma série de contradições morais e éticas em tempo de guerra. É interessante que o conflito esteja ao mesmo tempo tão perto e tão longe: o espectador, junto a Irka, observa o desastre aéreo e as bombas logo ao lado, mas ainda fica a uma distância considerável das trocas de tiro, sendo capaz de refletir acerca do que enxerga. A diretora evita, em paralelo, a construção de uma obra excessivamente hermética: o dilema humano de um nascimento próximo possui aspectos universais, acessíveis a espectadores de qualquer parte do mundo.

Enquanto isso, Gorbach brinca de transformar seu enquadramento fixo, ou de poucos movimentos, num cenário de transformações constantes, dependendo da camada da imagem em que se encontra cada personagem. Explica-se: em primeiro plano, próximo à câmera, Tolik conserta a antena parabólica destruída. Um pouco atrás, vizinhos começam a correr rumo a algum barulho potente no horizonte, e carros começam a aparecer. Num terceiro nível, mais distante, a fumaça se multiplica e indica fogo. Há uma infinidade de atividades ocorrendo simultaneamente, sobrepostas, em camadas diferentes da imagem. 

Com um leve giro da câmera à direita ou esquerda, revela-se um novo personagem inesperado, ou oculta-se a imagem aflitiva do boi sendo sacrificado, ao vivo, para alimentar as tropas inimigas. O ponto de vista revela as barbaridades, porém logo desvia o olhar, como quem está interessado, e chocado, com os fatos. Uma sequência de tiros ao final terá impacto considerável conforme o zoom out revela importantes fatores que estavam ocultos aos olhos do espectador. Já a cena final será um tour de force impressionante da direção, fotografia e atuação, numa situação tão chocante quanto previsível. 

Diz-se que os melhores roteiros fornecem um desfecho inesperado, porém, quando ocorre, soa como a única possibilidade possível. Este é o caso de Klondike: Guerra na Ucrânia, filme que combina poesia e racionalidade. O desfecho reforça a impressão de um teatro do absurdo, tão lúdico e violento quanto a imagem de uma casinha isolada, destruída e aberta por um rombo na estrutura. 

Trata-se de um cinema político inteligentíssimo, ciente que de seu discurso pode ser veiculado inteiramente através da linguagem cinematográfica, dispensando diálogos e letreiros explicativos. Tudo o que precisa ser dito estará claro no corpo e no rosto de Irka, mulher entre a vida e a morte, entre um marido pró-Rússia e um irmão pró-Ucrânia, entre partir e ficar. Por isso, sua conclusão impactante representará o limite de dois mundos. Caberá ao espectador determinar se esta cena representa um olhar otimista ou pessimista quanto ao futuro, ou seja, se ela oferece afeto ou horror. Talvez sejam os dois. A diretora percebe como ambas as coisas podem ser indissociáveis em tempos de crise.

Klondike: A Guerra na Ucrânia (2022)
9
Nota 9/10

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