Lugar Seguro (2022)

Crônica de uma morte anunciada

título original
Sigurno Mjesto (2022)
país
Croácia
gênero
Drama
duração
102 minutos
direção
Juraj Lerotić
elenco
Juraj Lerotić, Snjezana Sinovčić, Goran Marković
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Damir vai morrer. Nós sabemos, bem cedo na narrativa, que o rapaz de fortes tendências suicidas terminará morto, pois o próprio diretor nos avisa, numa espécie de flash forward fantástico, que os dois irmãos travam uma conversa durante o funeral. Mesmo assim, o longa-metragem é movido, da primeira à última cena, pelas tentativas do irmão Bruno (Juraj Lerotić) em interromper a tragédia. O drama carrega a forte aparência de um suspense psicológico, movido pela corrida contra o relógio: é preciso salvar Damir (Goran Markovic).

A decisão de nos avisar de antemão sobre o fracasso destes planos exerce um papel determinante na experiência do espectador. O cineasta evita fazer da resposta (sairá vivo, sim ou não?) a única recompensa ao público. É preciso acompanhar estes personagens pela jornada, em detrimento de um eventual desfecho espetacular. Caso estivesse em Hollywood, talvez o criador imaginasse a cena do irmão chegando no apartamento às pressas, e segurando o corpo do irmão segundos antes do pulo pela janela… Felizmente, nada disso ocorre aqui. Evita-se transformar a morte de terceiros em expurgo emocional ou diversão.

Em paralelo, o conhecimento do desfecho torna a experiência mais fatalista e sombria. Vista pelos olhos de Bruno, a jornada se presta à incompreensão do outro: por que o irmão, sempre tão feliz, estaria se comportando dessa maneira? Se ele parar os remédios, pode ficar bem? Precisaria se internar no hospital, ou poderia receber os cuidados de familiares em casa? Existe uma vontade simultânea, e contraditória, de minimizar os feitos (acreditando, mesmo sem provas para tal, que tudo não passa de uma fase ruim e passageira), e de valorizá-los ao máximo, afinal, o irmão está prestes a se matar e nada soa mais importante aos personagens do que isso.

Enquanto as ações possuem a intensidade de uma obra de ação, as imagens seguem a placidez de um drama contemplativo.

A estética condensa este encontro de intensidades contrárias. Enquanto as ações possuem a intensidade de uma obra de ação, as imagens seguem a placidez de um drama contemplativo. A belíssima cena inicial representa esta junção: em plano fixo e bem aberto, observamos a esquina de uma rua residencial qualquer. Pessoas caminham, cachorros passam, crianças brincam. Um minuto depois, uma pequena silhueta humana chega correndo, desesperada. Começa a esmurrar a porta, gritar, tocar o interfone. Depois, pelos ruídos, compreendemos que o vidro da entrada foi quebrado. Os passos se aceleram andar acima, e as mãos batem à porta com toda a força.

Logo, os personagens se desesperam, mas a direção, não. O cineasta evita músicas lacrimosas, close-ups em rostos dilacerados pela dor, planos de detalhe em pulsos e pescoços cortados. Ele equilibra o forte material emocional com uma linguagem implacável, composta por imagens estáticas e distanciadas. A direção de fotografia, muito contrastada, prefere mergulhar os personagens em sombras a revelar os detalhes de suas expressões. Consultórios médicos e delegacias são escuríssimos, distantes de qualquer verossimilhança. Esta sobriedade sepulcral prenuncia a morte melhor do que fariam os eventuais diálogos piedosos e pedidos de ajuda.

O roteiro se interessa à lógica dos procedimentos. Ao invés de apenas lamentar ou se questionar, Bruno tem inúmeras ações a cumprir: precisa ir à polícia, assinar documentos, garantir a internação de Damir. Ele está encarregado de comprar medicamentos, contactar uma amiga que talvez conheça médicos competentes. Tem que planejar a possível internação em outro hospital, e descobrir onde dormirá para estar de volta ao hospital pela manhã. A vida não para. Embora interrompa o trabalho, e não possua relações afetivas a gerenciar durante o período de crise (os personagens se dedicam unicamente ao suicida), o protagonista possui inúmeras funções, que podem acarretar numa tragédia caso mal executadas, ou cumpridas com atraso.

A morte será abordada, então, enquanto processo, ao invés de um acontecimento repentino. Ela se anuncia no horizonte, aprofundando-se dia após dia. Sofre-se com a perda do irmão antes mesmo de ele falecer de fato, pelo aspecto inevitável do desfecho, e pela indignação diante da impotência humana. Como pode o protagonista, a mãe, os psiquiatras a enfermeiras serem ineficazes diante de um único indivíduo fragilizado? Quem responsabilizar pela morte, quando todos aparentam se esforçar na tarefa de proteção? A culpa se encontra com a raiva sem destinatário específico. Odeia-se muito algo ou alguém, sem saber a quem. 

O desfecho oferece aos personagens (e espectadores) a oportunidade de expiar as dores postergadas e reprimidas por trás da necessidade de agir. Concretizados os fatos, cabe apenas gritar, chacoalhar a câmera, renunciar a tamanha controle e rigidez. Lugar Seguro parece se segurar numa elegância polida, como se não quisesse “fazer escândalo” e manter as aparências. Uma hora, a barreira da contenção se rompe, e os sentimentos transbordam em som e imagem. Os personagens, enfim, exteriorizam o que vinham sentido, e a câmera dança pelos ares. Trata-se de um momento intenso, exagerado propositadamente, próximo do cinema de horror — algo pertinente ao ocorrido.

Por fim, o projeto soa como uma obra bem refletida em termos de meios e propósitos, de escolhas de imagem e de som. Existe uma economia narrativa admirável, além de uma precisão cirúrgica na escolha de luz, de atuações, e até da discreta fantasia. Talvez a representação da morte pudesse ser acompanhada de metáforas mais livres, violentas, provocadoras. Entretanto, o filme sustenta o caráter sisudo do “bom cinema”, que frequenta os maiores festivais internacionais e suscita admiração generalizada sem incomodar ninguém, ou subverter qualquer regra dos preceitos audiovisuais. 

Pode-se falar numa abordagem competente, racional, mas também segura, avessa à tomada de riscos. Lerotić oferece um filme de ação, no sentido estrito do termo: enxergamos apenas os deslocamentos, as ligações, a correria entre hospitais e delegacias. Tudo aquilo que Bruno não compreende, em sua correria, permanecerá indisponível ao espectador — sobretudo questões de psicologia inerentes à depressão e a demais distúrbios da saúde mental. Observamos essa trinca de personagens centrais — mãe e dois filhos — sem compreender ao certo suas hesitações ou impulsos, seu torpor ou seu delírio final. A morte é tratada enquanto fato consumado, inquestionável. “Isso ocorreu”, e ponto final. Resta ao público elaborar o trauma, posto que o longa-metragem se recusa a tomar esta responsabilidade para si. 

Lugar Seguro (2022)
7
Nota 7/10

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