Mafia Mamma: De Repente Criminosa (2023)

A fábula do empoderamento

título original (ano)
Mafia Mamma (2023)
país
Reino Unido, Itália, EUA
gênero
Comédia, Ação
duração
101 minutos
direção
Catherine Hardwicke
elenco
Toni Collette, Monica Bellucci, Sophia Nomvete, Eduardo Scarpetta, Tim Daish, Alessandro Bressanello, Tommy Rodger, Jay Natelle, Mitch Salm, Dora Romano, Francesco Mastroianni, Giulio Corso
visto em
Cinemas

Mafia Mamma: De Repente Mafiosa parte de uma comédia de opostos. Por um lado, existe a vida suburbana e tediosa de Kristin (Toni Collette). Ela é negligenciada pelo marido infiel, desprezada pelos colegas de trabalho (todos do sexo masculino), e considerada sonhadora demais pelas colegas. Em outras palavras, uma pessoa frágil, passiva, conformada com uma vida de empolgação mínima. O reflexo maior da ausência de poder se encontra na falta de sexo com o marido, que prefere sair com outras mulheres.

Por outro lado, existe o imaginário da máfia. Muito distante dos condomínios de classe média nos Estados Unidos, há uma Itália de gangues fratricidas, que resolvem suas dívidas familiares na base do tiro, da ameaça e da tortura. Para estes homens, a violência se torna parte do cotidiano, o que inclui perseguições num funeral e tiroteios pelas belas ruas de pedras dos vilarejos do sul italiano. Na oposição entre o drama da mulher patética e o movimento do filme de ação se articula esta comédia de exageros e improbabilidade.

Felizmente, a diretora Catherine Hardwicke percebe o absurdo de sua narrativa. A ideia de um avô mafioso que deixa o controle dos negócios familiares à neta americana que nunca conheceu soa extremamente improvável, exigindo um esforço e uma boa vontade considerável do público. No entanto, os personagens também ridicularizam esta decisão, posicionando-se do lado do espectador. Todos reconhecem que os eventos são impossíveis, insanos, avessos a qualquer realidade plausível. Existe um pacto de solidariedade: ninguém, em frente ou atrás das câmeras, supõe por um segundo sequer que a narrativa seria possível num universo realista.

A excelente Toni Collette se diverte tanto na pose de mulher fracassada quanto no novo cargo de chefe da máfia, executando com igual embaraço as duas funções.

Logo, Collette se permite atuar dois ou três graus acima do realismo, abraçando o humor físico. A excelente atriz se diverte tanto na pose de mulher fracassada quanto no novo cargo de chefe da máfia, executando com igual embaraço as duas funções. Os figurinos, acessórios e interações seguem uma dinâmica semelhante, chamando atenção à sua inaptidão, à incapacidade de convencer. Em última instância, a comédia se beneficia da distância do real, ao invés de sofrer com ela. Há um caráter de pesadelo na iniciativa, como se Kristin pudesse acordar em sua cama, a qualquer instante, e declarar: “Eu tive um sonho insano ontem à noite…”.

Os demais personagens limitam-se a orbitar em torno da protagonista. Ergue-se uma homenagem à mulher comum, de meia-idade, desprovida de capacidades excepcionais. Subitamente, ela se vê cercada por capangas, além de uma assistente sedutora (Monica Bellucci). O universo é composto para ela, por causa dela. Há vídeos prontos que esperam os olhos de Kristin; reuniões de trabalho que desviam a atenção no instante exato em que a mulher é atacada; ou seguranças que a abandonam na noite mais perigosa de sua viagem. O tempo das ações e dos conflitos é inteiramente cronometrado em função desta figura banal.

É certo que nem todas as piadas funcionam, em meio a várias gags insistentes. Para cada piada recorrente, com desenvolvimento razoável (a ignorância a respeito de O Poderoso Chefão), há outras despejadas ao acaso (a obsessão por massas, o lema Comer Rezar Foder em relação ao título do filme romântico). No final, interessa apenas a capacidade de sobrevivência de Kristin graças à sua ingenuidade, e não apesar dela. Notam-se semelhanças com Legalmente Loira, onde a garota superficial resolvia um caso complexo graças aos conhecimentos sobre penteados. Aqui, a heroína é protegida por sua ignorância, e resiste por ser considerada indefesa, desprezível. Sua fraqueza se torna sua força.

No final, o delírio da incursão mafiosa pode ser lido como metáfora do empoderamento feminino. A protagonista poderia apenas trocar de emprego, abandonar o marido patético e adotar outras soluções mais cotidianas. No entanto, pelo prisma do realismo fantástico, ergue-se ao posto de líder, controladora das decisões, forte e capaz de enfrentar ataques violentos, além de se esquivar de um possível estupro (uma das únicas cenas realmente perturbadoras deste feel good movie). “É sobre se tornar a pessoa que você quer”, afirma uma das frases de efeito do terço final. A máfia converte-se em condenação, mas também um presente na vida desta simples representante comercial.

Por isso, a comédia se encaminha a um tom conciliador na conclusão, quando brigas de séculos se resolvem num passe de mágica, e inimigos obstinados sabotam a si mesmos. Otimista e generoso, o filme facilita o caminho de Kristin, romantizando a ascensão feminina no trabalho e na sociedade. O sexo se converte em símbolo central do percurso: a mulher deseja transar a qualquer custo e com qualquer um. Apesar da sugestão inicial de que figuras histéricas só precisariam de uma boa noite de sexo para se acalmarem, logo a possibilidade de enunciar seu desejo e controlar os encontros amorosos se torna libertadora.

Inclusive, o desfecho sugere uma aproximação lésbica, ainda que discreta, entre Kristin e Bianca (Bellucci), numa cena de carícias mútuas num sítio luxuoso. Já os homens se tornam cada vez mais patéticos, emasculados, dispensáveis. Kristin, Bianca e a tia Esmeralda se revelam as verdadeiras comandantes da narrativa, que possui a prudência de nunca encerrar a jornada de sua heroína nos braços de um homem musculoso. Há um caráter mais progressista e emancipador nesta fantasia do que poderia parecer a princípio. 

É certo que as cenas de ação nunca convencem, seja pela coreografia dos corpos, seja pela direção pouco dedicada. A escolha de enquadramentos, e mesmo a montagem perdem a oportunidade de tornar as cenas mais ágeis e reforçar o desconforto que reina nas sequências de humor. Hardwicke ainda pode refinar muito o tempo da comédia física. No entanto, resta uma obra honesta em sua galhofa. Além disso, trata-se de uma narrativa que nunca precisa se domesticar em termos de moral e costumes, nem desacelerar a viagem da personagem principal para elaborar suas mensagens finais. Ela permanece fiel a um ponto de vista cinematográfico e feminista, por mais singelo que seja.

Mafia Mamma: De Repente Criminosa (2023)
6
Nota 6/10

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