Miúcha, a Voz da Bossa Nova (2022)

Álbum de retratos

título original (ano)
Miúcha, a Voz da Bossa Nova (2022)
país
Brasil, França
gênero
Documentário
duração
98 minutos
direção
Daniel Zarvos, Liliane Mutti
depoimentos/imagens de arquivo
Heloísa Buarque de Holanda (Miúcha), João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Sílvia Buarque
visto em
Festival de Toronto 2022

A escolha mais surpreendente deste documentário vem da escolha de ocultar imagens recentes da cantora Miúcha. Ela guia a trama, através de uma narração íntima, entrecortada com a leitura de cartas e diários, na voz de Sílvia Buarque. No entanto, a única Miúcha que veremos, em absolutamente todas as cenas, do começo ao fim da experiência, será aquela da bossa nova, sorridente e jovem. Esqueça a evolução da carreira musical, a percepção a respeito das transformações da música brasileira: o roteiro se atém a um momento de nostalgia e saudade.

A este propósito, surpreende a maneira como a música da protagonista é deixada em segundo plano. Nesta estratégia de descolar a voz do referente, posicionando Miúcha como comentarista fantasmática de sua própria vida, a cantora será vista entoando melodias em voz sincronizada pela primeira vez no terço final. Jamais sabemos em quantos álbuns realmente trabalhou, nem descobrimos em profundidade como moldou sua voz, e de que maneira afinou a apresentação no palco. A música que realmente importa ao projeto é a música dos outros.

Isso decorre da escolha de observar a cantora em relação indissociável aos homens com quem viveu. Miúcha se torna a esposa de João Gilberto, mãe de Bebel Gilberto, irmã de Chico Buarque, amiga de Tom e Vinícius, e assim por diante. É claro que a mídia machista da época insistiu nesta aproximação, e a própria voz da cantora, em off, se vangloria de ter “bebido na fonte” dos três homens mais importantes da Bossa Nova. No entanto, o filme faz pouco esforço para se dissociar desta aproximação.

A montagem, por exemplo, poderia dar mais tempo à mulher consigo mesma, seus desejos, suas dúvidas a respeito da música e da vida. Que pensamentos ela realmente possui a respeito da Brasil, da ditadura mencionada de maneira tão discreta, da “morte” do samba anunciada nos jornais, de outros cantores e cantoras da época? A protagonista-narradora oferece inúmeras anedotas ocorridas em bares, festas, viagens, jantares. No entanto, é pouco solicitada em suas reflexões de mundo. Miúcha se converte num universo-bolha, mal inserido no contexto social.

Surpreende a escolha de roteiro e montagem de se focar tanto na vida pessoal e afetiva desta mulher, ao invés da música que a consagrou.

Na ausência de reflexões ou provocações, restam incontáveis fotografias da artista. Os diretores Daniel Zarvos e Liliane Mutti evitam não apenas as cenas com Miúcha contemporânea, mas toda captação moderna. O documentário se baseia unicamente em materiais de arquivo, além de raras intromissões animadas, em aquarelas simples, destinadas a representar grandes momentos de transformação. De resto, há centenas e centenas de fotos da jovem, que a montagem se limita a revelar com pequenos zooms, deslocando a imagem à direita e à esquerda, na tentativa singela de oferecer alguma forma de dinamismo.

Ora, outros documentários evitaram o rosto de seus protagonistas, porém encontraram nos materiais de arquivo inúmeras formas de criar metáforas, poesias, abstrações, atritos com o discurso — caso de Kurt Cobain: About a Son (2006). Aqui, os autores se restringem a um álbum de retratos, que certamente dispõe de fartos materiais, porém não evita a impressão de se repetir, ou de ter esgotado os recursos estéticos muito antes do fim da sessão. Não há nada mais incômodo do que a sensação de um filme que parece ter esgotado seu estoque de imagens, o que ocorre com frequência em documentários didáticos. Aqui, algumas fotografias chegam a se repetir.

Pelo menos, os autores evitam letreiros explicativos, cartelas separando em capítulos, falas de especialistas a respeito do momento e outros recursos excessivamente pedagógicos. Estima-se que Miúcha seja perfeitamente capaz de falar por si mesma — algo de que ninguém duvidaria. No entanto, surpreende a escolha de roteiro e montagem, de se focar tanto na vida pessoal e afetiva desta mulher, ao invés da música que a consagrou. Na fase da montagem, e do controle dos materiais, os autores expõem o que de fato pensam a respeito de seu objeto de estudo.

Resta o olhar afetuoso a uma mulher reconhecendo que não era de fato muito feminista durante a juventude, porém sem se julgar. Um dos aspectos mais reconfortantes da produção decorre da ternura com que Miúcha fala de seus próprios erros ou desvios de carreira, sem demonizar João Gilberto nem se apiedar a respeito de si própria. Existe um distanciamento provocado pelo tempo que permite à artista avaliar seu passado com a tranquilidade de quem narra a experiência de vida de outra pessoa. Ela admite talvez não ter sido uma boa mãe, e ri das brigas durante gravações de discos. Assim, desaparece o aspecto de “verdade a ser revelada” ou de furo de reportagem: o foco, felizmente, não se encontra no ineditismo do discurso ou das informações. 

Aos brasileiros, o retrato talvez soe um tanto burguês. A artista privilegia suas viagens pela Europa e Estados Unidos, a primeira experiência em restaurantes finos, a tristeza de ter que lavar as louças depois da grande festa de casamento. Não existe uma única menção ao público da bossa nova, à relação com fãs, com críticos, com outros além dos homens que amou, e da filha pequena. Essa pequena introdução à Bossa Nova serve bem ao olhar estrangeiro, com quem se faz associações através de versões francesas, inglesas e assim por diante.

Miúcha, a Voz da Bossa Nova também pode despertar questionamentos pela impressão de valorizar a protagonista pelo reconhecimento que teve de grandes artistas consagrados: foi Chico que escreveu para ela; Tom que desejou ser amigo dela; João Gilberto que foi procurá-la. Resta a imagem de uma mulher talentosa, querida, que aparenta ter construído uma pequena carreira bonita, graças aos homens que lhe permitiram chegar neste patamar. Ora, a humildade da cantora não pode se confundir com displicência da mise en scène.

Neste momento, é fundamental que os criadores se posicionem com firmeza em relação aos temas citados e comentados por terceiros. Por mais que amem Miúcha, isso não pode equivaler a uma carta-branca para que o discurso da protagonista seja, por osmose, aquele do filme destinado a representá-la. É possível, e desejável, admirar uma pessoa enquanto se expressa de maneira igualmente autoral e forte. Por fim, o documentário se revela terno, competente, ainda que excessivamente tímido em relação ao controle do discurso. 

Miúcha, a Voz da Bossa Nova (2022)
5
Nota 5/10

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