Not Dead (2024)

Um cinema da fuga

título original (ano)
Not Dead (2024)
país
Brasil
linguagem
Documentário, Drama
duração
71 minutos
direção
Isaac Donato
elenco
Rai, Piolho, Moska, Neilton, Luciano Robô, Ed, Yzgoto, Tinho, Luciana, Robson Véio
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

A sinopse desperta grande interesse: “Na terra da axé music, punks velhos resistem e vivem com autonomia”. Esta simples frase promete um embate entre ritmos musicais e diferentes gerações, além de discutir um ideal de resistência musical e cultural. O que haveria de particular no punk deste Estado, em relação às demais regiões brasileiras? O que pensariam estes “velhos” em relação ao punk praticado hoje, e que avaliação fariam dos demais estilos musicais? Como sustentariam os princípios do punk em suas vidas cotidianas?

Infelizmente, nenhum destes aspectos se encontra em Not Dead. O diretor Isaac Donato oferece um curioso documentário, contemplativo e moroso, a respeito de um grupo muito específico de músicos amadores, com foco na banda Levanta Véio. Os ensaios são raros, e as apresentações, mais raras ainda (neste caso, a imagem privilegia os corpos anônimos se chocando em frente à banda, e a tatuagem de Bob Marley no ombro do baterista). Desconhecemos suas referências e paixões. Eles citam os músicos “dos anos 1980” de que tanto gostam, embora os nomes estejam ocultos.

Talvez o autor optasse então por um mergulho na vida diária destes homens. Como viveriam a doutrina do “faça você mesmo”, e de enfrentamento ao sistema, junto às suas famílias, aos amigos, no trabalho? Mais uma vez, nada disso chega aos olhos do público. Apesar de uma breve menção política (em oposição ao bolsonarismo), as demais conversas nem sequer abordam a música ou a cultura punk. Nem mesmo se contextualiza a contento a herança notável do Not Dead, mencionada no título.

Até o momento, a carreira do diretor parece formada pela recusa em materializar cinematograficamente os temas escolhidos.

Pode-se elogiar a decisão de Donato em ignorar as ferramentas engessadas dos documentários tradicionais. Ele dispensa as entrevistas para a câmera, a narração em off, os letreiros explicativos e os materiais de arquivo. No entanto, haveria maneiras poéticas e políticas de se confrontar ao tema sem recorrer aos recursos didáticos de um cinema-reportagem. Aqui, a música e a especificidade regional se convertem em falsos motivos, ou meros pontos de partida para criadores desinteressados em percorrer a jornada traçada por si próprios.

Até o momento, a carreira do diretor parece formada pela recusa em materializar cinematograficamente os temas escolhidos: Açucena se voltava à festa de aniversário de uma senhora, porém recusando-se a mostrá-la em imagens. Agora, ele se dedica (supostamente) à música sem investigá-la, estudá-la, levá-la ao espectador. Nutre-se um estranho prazer pela frustração, uma liberdade (menos punk do que inconsequente) em lançar falsas pistas para, então, seguir por qualquer rumo que lhe pareça mais interessante. 

No caso, entra em cena a audiodescrição. O recurso de acessibilidade, fundamental ao cinema contemporâneo, permite que pessoas com deficiência visual possam desfrutar das obras graças à descrição auditiva, efetuada primeiramente por uma pessoa capaz de ver as imagens, e depois supervisionada por um revisor com deficiência visual. Estes profissionais debatem os termos apropriados para tornar a experiência dos espectadores PCD mais fiel possível ao registro audiovisual de base, garantindo um acesso democrático e menos desigual à cultura.

O tema é fascinante, sem dúvida, e digno de ocupar um longa-metragem, tanto quanto qualquer outro tópico de predileção dos autores. No entanto, as conexões com o punk são ínfimas. Isso não impede a montagem de dedicar um espaço tão importante ao revisor do roteiro de audiodescrição quanto aos membros do Levanta Véio. Ele explica etapa por etapa do procedimento, fornece exemplos de casos. A câmera acompanha as reuniões com a primeira redatora do texto, a discussão a respeito de terminologias. Uma moto que “cruza a rua” apenas atravessa a via, ou anda em zigue-zague? Um homem “todo de preto” ou “vestido de preto” seria o mesmo?

Assim, a narrativa se bifurca. Ambos os trechos, muito interessantes em si, não parecem conviver no mesmo filme. Devido à curtíssima duração do projeto, surge a impressão de que o montador incluiu estes trechos para ajudar a magra parte musical a atingir a duração mínima para que o resultado seja oficialmente considerado um longa-metragem. Certo, algumas das descrições dizem respeito a um vidro onde está pichada a palavra “dead”. Os demais trechos do texto se afastam de qualquer conexão musical.

Em paralelo, Donato insiste em recursos de ficcionalização que pretendem se passar pelo real, porém apenas sublinham o abismo entre um e outro. Ações condicionadas ou roteirizadas são comuns em documentários — e, de qualquer modo, o autor não teria nenhuma obrigação de seguir os preceitos de mínima intervenção, típicos do documentário tradicional. Ele poderia se filiar ao terreno fértil das obras “híbridas”, onde as fronteiras se apagam propositadamente.

Em contrapartida, a artificialidade das conversas “despojadas” e a recusa da encenação em se assumir como tais resultam numa abordagem pouco honesta com o espectador. Dois irmãos conversam a respeito da herança punk, cuidadosamente enquadrados pelos vãos nos objetos brancos de uma sala. O homem entrega cervejas e aparenta surpreender os colegas no bar, embora a câmera já estivesse posicionada para recebê-lo. A montagem ainda oferece um plano e contraplano do estabelecimento, de dentro e de fora, eliminando o teor de espontaneidade buscado pela direção.

Not Dead se encerra sem foco nem alvo. A representação pela ausência, em Açucena, constituía um desafio cinematográfico instigante. Aqui, em contrapartida, foge-se do tema, foge-se das imagens e dos próprios personagens que se oferecem tão generosamente à câmera. Mesmo a imagem do grupo, aparentemente assistindo ao resultado final numa sala de cinema, remete a uma nova sequência encenada, de forte aparência artificial. 

Não conhecemos ao fundo nem o punk, nem a audiodescrição. A narrativa inteira se compõe a partir de seis ou sete cenas, apenas, segmentadas e espalhadas pela montagem paralela, do primeiro ao último minuto. O resultado se assemelha a um projeto composto unicamente pelos fragmentos de imagem e de som deixados na mesa de edição por outro documentário. Trata-se de um atalho sinuoso que — surpresa! — nunca nos conduz ao destino anunciado.

Not Dead (2024)
4
Nota 4/10

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