Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois (2022)

Brincar de olhar

título original (ano)
Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois (2022)
país
Portugal, França
linguagem
Documentário, Comédia, Musical, Experimental
duração
88 minutos
direção
João Rui Guerra da Mata, João Pedro Rodrigues
com
Isabel Ruth
visto em
Cinemas

Um plano aberto visando uma avenida. Há plantas e árvores ao redor. Esta poderia ser apenas uma paisagem bucólica, no entanto, a câmera logo faz zoom-ins e movimentos bruscos para revelar aspectos inusitados deste quadro. Uma dupla pratica boxe abaixo, à esquerda. Um trem passa logo acima. Por trás dos prédios, percebe-se um avião deslizando pelo horizonte. Abaixo dele, sob os arbustos, existe uma mão humana separada do corpo. A música sugere um elemento mágico, de aventura, talvez um tanto sinistro.

O documentário segue por esta estrutura atenta e curiosa. Ele mergulha no real não apenas para apreendê-lo, mas para investigar cada canto ou detalhe da imagem, tal qual o detetive diante da cena do crime. Surpreende o número de vezes que, a partir de uma paisagem aparentemente banal, a câmera gira à direita e à esquerda, acima e abaixo, aproximando-se aqui e acolá. Admira-se o asfalto ao longe, e então uma minúscula lesma no canto da parede. Um grande conjunto de mesas no refeitório, mas também a única xícara de café deixada sobre uma delas.

Existe um aspecto brincalhão em Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois. O projeto parte de uma proposta lúdica de observar, e depois enxergar novamente, os mesmos espaços cotidianos de Lisboa. Cada parte do enquadramento se ressignifica, transforma, numa estrutura que talvez lembre o jogo da memória, ou de adivinhações. Portugal se transmuta em tabuleiro, o que confere tanta ambição quanta leveza a este cinema sempre instigante proposto por João Pedro Rodrigues, aqui, em parceria com João Rui Guerra da Mata.

Existe um aspecto brincalhão em Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois. O projeto parte de uma proposta lúdica de observar, e depois enxergar novamente, os mesmos espaços cotidianos de Lisboa.

Os cineastas esclarecem, desde o princípio, a homenagem prestada a Os Verdes Anos (1963), clássico do cinema português, filmado na mesma rua onde vivem. Eles se colocam em cena, inclusive, saindo de uma janela e comentando esta escolha, na função de narradores. Depois, somem enquanto personagens para dar foco à única figura humana recorrente, e diga de ser considerada protagonista dessa obra: Isabel Ruth, atriz de Os Verdes Anos, em cenas musicais divertidamente anacrônicas, em preto e branco, resgatando certo glamour dos anos 1960.

Curiosamente, esta nostalgia se une a um olhar bastante contemporâneo. Primeiro, pela textura digital da imagem, obtida via captação leve e quase amadora, caseira. Segundo, pelas menções explícitas à pandemia de Covid-19, e aos espaços vazios na capital portuguesa durante o período de lockdown. Um homem com o rosto coberto por máscara e mãos encapadas em luvas descartáveis tenta, de maneira tragicômica, abrir a porta de entrada do prédio sem usar os dedos — o humor anacrônico de um Jacques Tati também se encontra no horizonte.

Logo, a dupla de autores se propõe não apenas a admirar o espaço do absurdo, o espaço desprovido de humanos, mas também o espaço desumanizado por medidas sanitárias. A trilha sonora constante, próxima do cinema fantástico, nos remete a uma espécie de realismo mágico, como se a cidade tivesse se transformado num lugar falso, artificial — um lugar de cinema. Assim, a montagem brinca com a trilha sonora, cortando planos enquanto interrompe a fluidez da música. Dentro de um bar vazio, uma canção jocosa sugere humor diante do único banco caído no chão. Os elementos de linguagem dançam uma única coreografia.

O projeto surge dessa tentativa de oferecer ao espectador o estranhamento a partir do banal. Observamos uma rua comum como quem se depara com um mundo de dragões e princesas, graças aos enquadramentos, à trilha sonora, aos cortes secos da montagem, aos movimentos ríspidos da câmera presa sobre o eixo. Os interstícios musicais de Isabel Ruth seguem o tom intermediário de seriedade e paródia, ambição cinematográfica e leveza narrativa. A atriz se entrega à proposta, divertindo-se, mas jamais ridicularizando as cenas. O teor da encenação lembra muito aquele do recente Fogo Fátuo, de Rodrigues.

A priori, não há conflitos nem ações. Caso se considere a cidade, ou a rua, como personagem central, pode-se dizer que ninguém deseja nada, nem encontra dificuldades para concretizar nenhuma ambição. Cenas do início poderiam surgir ao final, e vice-versa, numa organização menos cronológica e causal do que por fluxo de associações — vide os lugares que retornam, as rimas visuais entre lanchonetes e bares, e assim por diante. “Nada acontece”, no sentido tradicional do termo, o que significa que a linguagem cinematográfica pode trabalhar pelo prazer metalinguístico de construir imagens e sons, sem se preocupar em avançar a trama ou aprofundar personagens. Destaca-se o prazer de brincar de cinema — o caráter lúdico retorna aqui.

Talvez Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois possa ser descrito como “ensaio visual”, termo reservado com frequência a obras experimentais, sérias, cerebrais e herméticas em suas propostas. Neste ponto, Rodrigues e Guerra da Mata nos surpreendem, com um olhar tão silencioso quanto despojado. O rigor da construção das imagens (há notável preocupação com os enquadramentos e o olhar) se encontra com o desapego total da produção de sentido, compreendido pelo viés clássico-narrativo. Os diretores desejam construir matéria audiovisual, não necessariamente uma história sobre personagens.

Assim, solicitam um espectador ativo, tentando compreender de onde se filma, o que exatamente estamos vendo, por quê, e por quanto tempo. O que faz uma mão e uma perna humanas no chão? Por que a câmera gira à direita e à esquerda, nervosa, e a montagem picota uma sequência em meia dúzia de planos para aguardar a simples saída de um carro da garagem? Existe um apelo provocador à frustração e à quebra de expectativas. Quando se acredita que o dispositivo está plenamente justificado, Isabel Ruth vem para ficar — e cantar. Quando se estima que os enquadramentos focam apenas em espaços vazios e divertidos da rua, eles mergulham numa casa abandonada, triste com suas cadeiras solitárias em cada cômodo.

O resultado apela a uma nova maneira de olhar a rotina. Os diretores apresentam uma maneira de ver, buscando o inusitado, os ângulos diferentes, as formas que normalmente não chamariam a atenção, e que poderíamos reproduzir, enquanto espectadores, pós-sessão. O olhar pode perfeitamente enquadrar estes espaços ao redor de nossas ruas, buscando tanto as pequenas lesmas quanto os trens e membros decepados. O convite à contemplação não se faz lânguido e moroso, mas ativo, frenético, cheio de vigor. 

Os autores enxergam o horizonte tal qual um jogo dos sete erros. Por trás da simplicidade desta atitude, sugerem que: 1. Há infinitas maneiras de se olhar para o mesmo objeto; 2. Cada maneira percebe aspectos que as outras não percebem; 3. O olhar constitui um elemento ativo no meio, ao invés de uma postura passiva de espera por estímulos externos; 4. O mundo é transformado pela nossa observação, assim como o olhar muda a obra de arte. Em suma, nossa presença e nossa percepção alternam sensivelmente o universo que nos circunda. Esta, sim, é uma reflexão belíssima para retirar da pandemia, dos espaços vazios, do distanciamento social e da relação com o outro.

Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois (2022)
8
Nota 8/10

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