Portavoz (2022)

O olhar de desinteresse

título original (ano)
Passe-Parole (2022)
país
França
linguagem
Drama, Documentário
duração
80 minutos
direção
Mario Valero
elenco
Clémence Arrivé, Raimon Gaffier, Élise Vilain Gosselin, Hugues Perrot, Judit Naranjo Ribo
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Dizem que duas irmãs gêmeas cometeram suicídio num parque de Paris. Os cadáveres foram descobertos pela manhã, afogados num lago. Mila está se separando do namorado Pierre. Uma motocicleta foi derrubada à beira da calçada. Alguns pombos. O presidente Emmanuel Macron decide reformar as aposentadorias, contrariando a classe trabalhadora. Comida com “H”… Tem comida com H? Stop! Estou montando um grupo de teatro aqui perto, quer vir? O coronavírus aponta no horizonte. Falam em isolamento total. Já te contei das duas irmãs afogadas?

Portavoz segue uma estrutura curiosa — para dizer o mínimo. Parte do anúncio bombástico da tragédia parisiense, e da redação do artigo jornalístico a respeito deste episódio. Aparenta, então, se interessar pelas duas jovens, originárias de Bucareste, e falecidas juntas. Ora, o roteiro jamais investiga o que teria ocorrido naquela manhã, e os demais personagens tampouco o fazem. Os amigos duvidam se o caso realmente aconteceu. Talvez tenha sido apenas o exagero de um jornal sensacionalista.

Inúmeros acontecimentos relevantes atravessam a “narrativa” — curiosa palavra para uma colagem que se pretende, justamente, contrária a qualquer história linear e cronológica. A política francesa e as questões de saúde mundial são mencionadas, ainda que nenhuma delas permaneça durante tempo suficiente para se tornarem um conflito, ou determinarem as ações dos personagens. Não sentimentos o peso do isolamento; nenhum deles soam particularmente afetado pelas transformações trabalhistas. 

Valero não se interessa por nenhum dos tópicos abordados, nem pelos personagens, nem pelos locais. Desliza entre eles com a mesma apatia de quem segura o controle remoto na mão e zapeia entre canais de televisão para passar o tempo.

As figuras em cena deambulam, ocupam o enquadramento em close-ups frequentes e asfixiantes. No entanto, desconhecemos seus objetivos, intenções, motivações. De onde vêm, e para onde vão? O que desejam? Por que o cineasta Mario Valero considerou interessante se ater a estes rostos durante mais de um ano? Mistério. O tempo passa sem percebamos (de repente, Mila já se separou de Pierre há meses, e a pandemia terminou), e os espaços flutuam a esmo (a mulher fala italiano, e então espanhol, mas ignoramos em que país se encontra, e por qual razão viaja de um ao outro).

O projeto pretende se abrir ao acaso, aos acontecimentos que a sociedade e os protagonistas possam lhe oferecer, fugindo ao controle e ao condicionamento prévio. Até aí, o dispositivo poderia capturar belas faíscas da vida cotidiana. No entanto, Portavoz transmite uma incômoda sensação de aleatoriedade. A câmera busca se posicionar em todos os lugares, ao mesmo tempo, focando-se tanto nos rostos quanto nos objetos, tanto na parte interna quanto externa das locações, tanto no antes quanto no depois. 

Em consequência, transmite falta de foco e intencionalidade. A câmera na mão, profundamente tremida, deslocando-se de modo errático à direita e à esquerda, efetuando zooms e reajustando o foco, deriva de uma tentativa antiquada de produção dinamismo ou tensão. Nem mesmo os novos dispositivos digitais caseiros produzem tamanha instabilidade: os tremeliques foram gerados artificialmente pelo diretor. Já a montagem alterna entre uma dúzia de focos (pelo menos), evitando um diálogo real entre eles. As subtramas disputam a nossa atenção, ao invés de formarem um conjunto coeso e comentarem uma à outra.

Com o caminhar da trama, surge a impressão de que Valero não se interessa, de fato, por nenhum dos tópicos abordados, nem pelos personagens, nem pelos locais. Desliza entre eles com a mesma apatia de quem segura o controle remoto na mão e zapeia entre canais de televisão para passar o tempo e matar o tédio. A experiência representa o equivalente cinematográfico das conversas de elevador, ou no consultório do dentista: servem para ocupar o vazio, driblar o desconforto, dar a impressão de alguma atividade. Não possuem um conteúdo propriamente dito: correspondem a um gesto retórico, cujo valor se encontra na própria existência.

Seria possível comparar Portavoz a uma performance artística, um exercício blasé e distanciado a respeito de temas sensíveis do cotidiano. Em tela, apesar dos problemas financeiros, apesar das mortes por Covid, apesar do suicídio das gêmeas, Mila, Pierre, Maria e Boris pensam apenas em amar ou ser amados, em sair na rua ou jantar com os amigos. Numa sequência, Boris começa a tirar as calças enquanto pergunta à namorada se quer transar. Ela dispensa, com a vista absorta num livro, sem nem mesmo encará-los nos olhos.

Este aspecto hipster, voltado a uma pós-modernidade de pessoas ensimesmadas, poderia constituir uma crítica feroz de nossa sociedade, caso o cineasta se prestasse a tal discurso. O teor também se aproxima da tragicomédia de costumes em tempos de Covid — teor igualmente desviado, em prol de uma abordagem grave. Valero estima fornecer reflexões relevantes, e personagens complexos, atravessando a virada de tempos políticos na França. Não percebe, em sua autoimportância, a vacuidade e apatia do gesto.

A alguns criadores, cabe questionar, a título de curiosidade verdadeira e sincera, por que criam. O que os motiva a fazer um longa-metragem, certamente fictício, apesar da aparência de documentário? O que pretendia trazer enquanto proposta estética, reflexão de mundo? Por que dedicou tanto tempo, e envolveu inúmeros profissionais, neste brainstorming umbiguista? É perturbadora a impressão de se deparar com cineastas que não tenham nada a dizer, nem imagens a mostrar. Parecem fazer cinema para se ocupar, para se manterem em movimento. O cinema pelo simples gesto de fazer cinema. Por que nós, espectadores, deveríamos nos sentar na sala de cinema e dedicar nosso interesse ao desinteresse alheio?

Portavoz (2022)
2
Nota 2/10

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