Quarto 212 (2019)

Ciranda dos cínicos

título original (ano)
Chambre 212 (2019)
país
França, Bélgica, Luxemburgo
gênero
Comédia, Romance, Fantasia
duração
86 minutos
direção
Christophe Honoré
elenco
Chiara Mastroianni, Benjamin Biolay, Vincent Lacoste, Camille Cottin, Carole Bouquet, Stéphane Roger, Harrison Arevalo, Claire Johnston, Mari-Christine Adam, Clara Choï, Charlie Morgan
visto em
Reserva Imovision

Ao retratarem histórias de amor, alguns diretores de cinema reconhecem que o sentimento não pode ser idealizado. Entendem que os apaixonados ainda vivem em sociedade, e possuem outros conflitos familiares, profissionais e financeiros a gerenciar enquanto experimentam seus sentimentos amorosos. Compreendem que nem todas as histórias podem ser felizes, e que o romantismo consiste numa utopia inatingível. Pintam a beleza do amor junto à inevitabilidade das decepções. Pressupõem que a paixão seria um estado ou sentimento tão digno de representação quanto qualquer outro.

Christophe Honoré não é um destes diretores. Romântico até o último fio de cabelo, ele continua apresentando, após cerca de quinze longas-metragens na carreira, histórias de pessoas que se apaixonam e vivem, única e exclusivamente, o êxtase e as dores dos laços afetivos. O resto do mundo desaparece, ou não importa: os personagens — sempre burgueses, um tanto livres e soltos pela cidade — preocupam-se em amar e ser amados; em ter a pessoa dos sonhos nos seus braços no dia seguinte; em casar e viver felizes para sempre.

Este universo desesperadamente otimista se traduziu em diversos filmes musicais, nos quais a artificialidade do gênero servia a tornar os encontros e desencontros alegremente absurdos. Bem Amadas (2011) e Canções de Amor (2007) carregavam uma ponta de autoironia muito propícia, nestes contextos próximos aos contos de fada, ao reconhecimento dos limites de sua verossimilhança. O cineasta francês sempre se sai melhor quando parte do princípio que seus amores constituem sonhos, ao invés de uma possibilidade plausível.

O resultado se assemelha a uma traquinagem de autor, um pequeno filme cheio de tiques e cacoetes porque o diretor pode se permitir fazê-lo, com o suporte de um grupo de atores excelentes.

Curiosamente, na fase atual, em que filma devaneios acordados, sem o suporte da música, mas apostando em encontros do acaso, tem obtido resultados menos expressivos. Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2018) buscava contaminar objetos e cenários com a improbabilidade do sentimento amoroso. Os homens se encontravam por acaso, tremiam de paixão em questão de horas, e depois viviam seus casos em quartos azuis, sobre camas azuis, usando roupas azuis. A estética era tão opressora (destituída da leveza e escapismo dos musicais) que chamava muita atenção para si própria, ao invés de favorecer o retrato de relacionamentos.

Algo semelhante se reproduz em Quarto 212, outra proposta “naturalista” de Honoré — ou o mais próximo que o cineasta possa chegar deste conceito. Entenda-se: o filme constitui uma fantasia, estruturalmente falando. Um casal em crise visita o hotel em frente ao seu apartamento, e descobre, no cômodo mencionado no título, uma versão jovem da pessoa por quem se apaixonaram quando adolescentes. Nada realista, portanto. Mesmo assim, o cineasta pretende que “Esta Noite Mágica” (título internacional) ocorra num clima de despretensão blasé, como se o encontro com a magia fosse algo banal, simples, que não exigisse explicações nem provocasse espanto.

O universo narrativo corresponde algo digno de atos falhos freudianos, parte edulcorados, parte semelhantes a um delírio de Alice no País das Maravilhas. Quando abrem portas do quarto 212, os personagens descobrem a própria mãe, a avó, a Vontade (isso mesmo, um homem que representa sua vontade, e se assemelha estranhamente a Charles Aznavour). Num corte da montagem, surgem neste espaço todos os homens com quem Maria (Chiara Mastroianni) já se relacionou. Mais um corte, e brota um bebê junto a Irène (Camille Cottin) e Richard (Benjamin Biolay). “Quem é essa criança?”, pergunta ele. “Nosso filho, claro”, responde ela. 

Esta configuração assume um caráter teatral, transformando o quarto de hotel num palco onde os personagens entram e saem conforme os gostos do criador. Ao invés de levar a câmera ao mundo, prefere que o mundo se desloque ao cenário de sua conveniência. Eles nunca poderiam existir no mesmo espaço-tempo, porém o maestro assim o deseja e, num estalar de dedos, faz aparecer as figuras solicitadas, na idade conveniente. Os personagens encontram a si próprios no passado, ou a amante de 20 anos atrás, como quem cruza com um desconhecido na rua: “Ah, você por aqui!”. Nada chocante, portanto.

O resultado sustenta a impressão caricatural do cinema francês, que corresponde a uma ínfima parcela da produção daquele país, ainda que perdure no imaginário coletivo (brasileiro, pelo menos). Os personagens limitam-se a fazer amor e depois falar de si próprios enquanto estão deitados na cama, com a nudez parcialmente coberta pelo lençol. Fumam, questionam o sentido da vida, a duração dos amores, o significado de sua própria felicidade. Trata-se de um cinema umbiguista, e parcialmente assumido enquanto tal. Aqui, pensa-se apenas no próprio sentimento amoroso, retirando de cena a responsabilidade perante à alteridade.

É sintomático que Maria saia com todos os homens que deseja, por supor que o marido faça o mesmo após 20 anos de relacionamento. Ao confessar uma traição sem qualquer peso na consciência, ela contesta a indignação do esposo, dizendo que as coisas são assim mesmo. O bebê nascido do relacionamento fictício entre Richard adolescente e Irène se transforma em boneco, e depois em criança humana, sem qualquer diferença para os envolvidos. A mulher encontra uma versão de si própria mais velha, na praia, com quem toma um chá antes de ir embora. Nada afeta essas pessoas ensimesmadas, indiferentes. “Mas e eu?”, parecem perguntar a cada cena.

Assim, o aspecto de magia se dissipa graças à tendência da direção e dos personagens a ignorar qualquer transformação ao redor. Meus amantes apareceram no quarto? Paciência, problema deles. O marido não gostou de ser traído? Que aprenda a lidar com isso. O adolescente era apaixonado pela professora de piano? Bom para ele. Existe um cinismo generalizado nas relações, que contamina e amarga o resultado. Ao invés de um teor colorido e afetuoso, Honoré carrega sua narrativa de um desprezo profundo pelo outro. Todos os personagens parecem uma versão mais ou menos sentimental de uma única pessoa.

Por isso, falam da mesma maneira, em igual velocidade, com semelhante desafetação. Falta volume, textura e jogo cênico a Quarto 212, filme repleto de ideias e iniciativas, mas sem a menor paciência para desenvolvê-las. O cineasta imagina duas cabeças gigantescas conversando sobre prédios. Ora, o recurso nunca retorna na trama. A ideia das portas revelando figuras importantes do passado também se esgota sem deixar traços. Os amantes do passado irrompem no hotel, admiram da protagonista, mas basta pedir que saiam para desaparecerem, também sem provocarem nenhum conflito. O diretor e fotografia Remé Chevrin filma algumas cenas em plongée profundo, ou seja, num plano aéreo que transforma os dois apartamentos centrais em estúdios. No entanto, o procedimento jamais provoca efeito dramático digno de nota, sendo esquecido em seguida.

O resultado se assemelha a uma traquinagem de autor, um pequeno filme cheio de tiques e cacoetes porque o diretor pode se permitir fazê-lo, com o suporte de um grupo de atores excelentes para ajudá-lo na autoindulgência. Chiara Mastroianni compreende este mundo de fantasia melancólica melhor do que ninguém (após seis filmes com o cineasta), embora Benjamin Biolay sustente a mesma voz baixa e monocórdica de sempre, e Vincent Lacoste teime em retirar o ar de impaciência adolescente de todos os personagens que interpreta. Há momentos interessantes, muito bem filmados (a caminhada da advogada pela rua, flertando com todos os homens que lhe interessam, com uma câmera livre e montagem impecavelmente ágil). Em contrapartida, eles se encontram com outros de um amadorismo incompreensível (os enquadramentos do chão, deixando que partes da cama ocupem a maioria da imagem, ao invés do casal Richard-Irène). 

Mesmo o aspecto assumidamente cafona do final, quando neve e fogo se encontram numa única cena, com as cortinas ao vento tal qual um videoclipe de Bonnie Tyler, poderia ser interessantíssimo caso abraçado, explorado, desenvolvido. Ora, Honoré parte de conceitos díspares, heterogêneos, como se tivesse decidido filmar um brainstorming. O roteiro precisaria de mais tratamentos para refinar a proposta, e a produção certamente poderia alertar para a dispersão fortuita de caminhos e intenções. A maior prova da persistência contemporânea do cinema do autor se encontra nestas pequenas obras fracas, imaturas, produzidas e lançadas em grandes festival (Cannes, no caso) devido ao selo de qualidade representado pela marca do diretor.

Quarto 212 (2019)
4
Nota 4/10

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