Racionais Mc’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo (2022)

Os comunicadores

título original (ano)
Racionais Mc’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
116 minutos
direção
Juliana Vicente
com
Mano Brown, Edi Rock, KL Jay, Ice Blue
visto em
Netflix

Este documentário impressiona tanto pelas qualidades quanto pelos problemas que consegue evitar. É comum, nas trajetórias biográficas, que os cineastas se prendam a uma de duas possibilidades, pelo menos: seja a constatação linear dos fatos (a banda foi criada em tal ano; fez tal música; conquistou a fama), seja pelo elogio à genialidade dos músicos. Quando se trata de artistas homenageados em vida, ao invés de postumamente, o conteúdo resvala com facilidade nos elogios, caso em que as obras se convertem em declarações de amor dos diretores aos biografados.

Felizmente, o projeto dirigido por Juliana Vicente não procura se legitimar pelo afeto. Compreende-se que a cineasta nutra uma admiração pelos rappers, no entanto, ela jamais elabora uma obra de fã, para fãs. Seu interesse está dissociado da nostalgia, das revelações inesperadas dos bastidores, das imagens jamais vistas ou anedotas nunca contadas. Os aficionados do grupo talvez conheçam previamente todas as informações anunciadas pelo roteiro. Em chave oposta, os espectadores distantes do trabalho de Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue tampouco se sentirão alienados pelo tema.

O longa-metragem foge ao viés espetacular. Com mais de 30 anos de carreira, o quarteto possui seu histórico de controvérsias, devidamente abordadas ao longo da narrativa. No entanto, estes episódios são narrados com respeito e distanciamento, evitando tanto a atenuação de sua gravidade quando o apelo às emoções do espectador. Em outras palavras, não somos convidados a nos chocar, a nos surpreender, nem a enxergá-los como heróis ou bandeiras de uma causa. O extenso filme evita contextualizar o papel dos Racionais Mc’s junto a outros rappers, e ao cenário do hip hop, hierarquizando-os no painel cultural brasileiro.

A fala dos quatro protagonistas dispensa o caráter fatual (“a história ocorreu assim”) para privilegiar um aspecto confessional, amigável e acessível. 

Retirando de cena todos os aspectos valorativos e de julgamento moral, resta uma reflexão dos artistas por si mesmos. Eles são colocados diante de um fundo preto e infinito, sobre poltronas confortáveis, num cenário ao mesmo tempo elegante e remetendo à estética do hip hop. Tanto sozinhos quanto nas conversas em grupo, são convidados a falarem livremente, incorporando o peso das lembranças, as hesitações, as deturpações comuns à memória afetiva. A fala dos quatro protagonistas dispensa o caráter fatual (“a história ocorreu assim”) para privilegiar um aspecto confessional, amigável e acessível. 

O fator mais interessante desta narrativa vem do perpétuo questionamento dos Racionais a respeito de sua arte. Eles indagam se o álbum mais popular e premiado não teria sido aqueles que os afastou da favela; se a sua música estaria se associando à violência urbana, pela incompreensão de parte do público; se as letras ainda seriam compreensíveis aos moradores das periferias; se a sonoridade possui textura e melodia suficientes. Mano Brown comprova ser um homem crítico e inteligentíssimo, capaz de reconhecer equívocos e alterar os rumos de sua expressão quando necessário.

O procedimento passa longe de uma falsa humildade. Os cantores e compositores nunca se apequenam, apenas insistem em compreender suas criações à luz da sociedade, do bairro onde nasceram, da idade que tinham, das cenas de violência que testemunharam, das referências musicais e políticas de cada um. O filme não precisa efetuar conexões socioculturais, porque os personagens o fazem por si próprios, sendo acompanhados por uma produção competente, polida, ágil, repleta de materiais de arquivo. Os Racionais enxergam a si próprios como questionadores, para além de artistas. Tamanho distanciamento desperta o teor mais forte da obra.

Vicente aproveita as deixas para questionar a violência policial, o racismo de Estado, a tendência a criminalizar a arte produzida por pessoas negras, a perseguição e mesmo assassinato de ícones negros capazes de despertar um viés crítico nos moradores das periferias. As músicas do grupo jamais se convertem em objetivos em si próprias, aparecendo discretamente, em trechos pequenos, que atribuem ritmo e comentam a evolução da banda. Estas criações são vistas como causa e consequência dos desmandos de um país racista, ou seja, em resposta a ele. Por isso, seria impossível compreender os Racionais sem analisar a sociedade em que se inserem.

Felizmente, o discurso se beneficia das falas potentes do quarteto, tão assertivos em seus posicionamentos políticos quanto despojados no retrato da intimidade. Em oposição ao imaginário coletivo de bandas rebeldes e ruidosas, conhecidas pelas separações, brigas e disputas de poder, os protagonistas são interpretados pela impressionante coerência e coesão interna. Trata-se dos mesmos quatro participantes há mais de 30 anos, acompanhados das mesmas empresárias e apoiadores na equipe técnica. A arte é enxergada enquanto ofício, ao invés da manifestação direta de um gênio ou talento ímpares. A música se desenvolve, se aperfeiçoa, se transforma. 

É possível que o documentário tente abraçar temas em excesso, mais do que consiga aprofundar. O massacre do Carandiru, o assassinato de Marielle Franco, o papel da mãe de Mano Brown e dos colegas e apoiadores ganham menções discretas, incondizentes com sua força e importância. Neste caso, pergunta-se: é melhor apenas citar algo importante, sem o tempo de desenvolver, ou retirar tais temas da montagem? Em determinado momento, o grupo parece ter conquistado sucesso e dinheiro, comprando carros de luxo, para em seguida um deles citar a dificuldade de pagar as contas. O que ocorreu entre estes dois instantes? A vida dos artistas durante a interrupção das apresentações também é ocultada. Haveria mais a trabalhar do que o roteiro consegue abraçar.

O discurso evita transformar o protagonismo dos Racionais num acerto de contas contra a mídia racista e contra aqueles que os atacaram. Assim, deixa de lado muitas controvérsias para se focar naquilo que a banda tem a oferecer desde os anos 1990. Para alguns, o resultado pode soar atenuado, polido demais para uma banda marcada pelo furor político. A presença da produção endinheirada da Netflix também soaria como uma contradição a uma banda voltada à linguagem da periferia. Ora, mas não teriam os moradores do Capão Redondo e outros bairros desfavorecidos o mesmo direito de se verem representados no audiovisual e no streaming? 

Por fim, entre excessos e lacunas, sobressai ao filme a vontade de estabelecer um diálogo entre o ponto de vista crítico da diretora e aquele dos músicos. Vicente jamais se rende ao grupo, oferecendo a imagem para dizer o que queiram, de maneira submissa. Ela estabelece um diálogo de igual para igual, onde a fala potente acerca do racismo de Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue dialogue com os pensamentos da autora, via imagens, montagem e uso de sons. A obra passa longe das intenções de ser disruptiva, experimental, preferindo utilizar a popularidade de uma grande plataforma para veicular sua mensagem política ao maior número de pessoas. Juntos, o cinema e a música produzidos por criadores negros demonstram não apenas o domínio da arte, mas também da comunicação.

Racionais Mc’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo (2022)
7
Nota 7/10

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