Soap (2023)

A esquerda no divã

título original (ano)
Soap (2023)
país
Brasil
gênero
Drama, Comédia
duração
110 minutos
direção
Tamar Guimarães
elenco
Camila Mota, Alselm Franke, Ana Teixeira Pinto, Dirk Moses, Luis Knihs
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

Os grupos de WhatsApp mudaram. Nada de mensagens de bom dia e memes desagradáveis dos familiares. Agora os correspondentes discutem a possibilidade de fazer uma revolução popular de esquerda no Brasil. Como infiltrar os grupos conservadores e apresentar, em linguagem bastante acessível, os pensamentos antifascistas? Presos em seus apartamentos, meia dúzia de adultos solitários confabulam a respeito do futuro do país.

Às vezes, surgem formulações interessantes: interpretar o bolsonarismo enquanto mero discurso de ódio equivaleria a dispensar o aspecto amoroso de um fascismo que possui verdadeira paixão por certos ideais (a família tradicional, a divisão binária e hierarquizada entre homem e mulher, etc.). Concordam que a “esquerda branca” morreu, e o esclarecimento ideológico das massas, caso um dia ocorra, virá de pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+. “Mas eu também sou esquerda branca, e não estou morta!”, contesta uma artista.

Soap imagina o pretexto de uma novela desenvolvida pelos personagens, remotamente. Em virtude do isolamento social durante a pandemia de coronavírus, começam a desenvolver o projeto em suas casas. Nunca se discute quem financiaria tal empreitada, em qual veículo seria exibida, quais seriam os prazos ou as obrigatoriedades do contrato. Fica claro, em poucos minutos, que o roteiro coletivo constitui mera desculpa para promover uma discussão política entre os protagonistas. Eles estão distantes de qualquer contexto verossímil de trabalho para uma grande empresa.

A narrativa perde foco e potência conforme avança. Ela corre o risco de se tornar exatamente aquilo que critica: um pensamento burguês, elitista e branco que discorre acerca das classes populares sem lhes conferir protagonismo, fala ou ponto de vista.

O início se mostra bastante promissor. A diretora Tamar Guimarães se concentra inicialmente em duas personagens, apostando num discreto humor de desconforto. Os próprios capítulos apontam ao senso de autoironia: 1. Sonhos eróticos de uma noite de primavera; 2. A esquerda branca está morta; 3. Infiltração é amor; e assim por diante. A cineasta critica discretamente o idealismo de esquerda, num filme de esquerda voltado às pessoas desta mesma visão de mundo. 

No entanto, a narrativa perde foco e potência conforme avança. Multiplicam-se os personagens, os países (Portugal e Alemanha entram em campo), as línguas, os temas abordados. Caso quisesse adotar, por sua vez, a estrutura de uma novela, o texto precisaria se organizar em núcleos narrativos, desenvolvê-los em paralelo. Ora, alguns personagens se tornam próximos de figurantes (o rapaz que “desconsidera a base marxista” do argumento da colega) enquanto outros dominam a encenação, tanto no grupo de roteiro quanto interpretando seus papéis na ficção-dentro-da-ficção (a líder da Plataforma, uma mistura de “cura gay” e constelação familiar).

O roteiro está repleto de questionamentos válidos, ainda que mais especulativos do que empíricos. Ele parte de falas absurdas de Jair Bolsonaro (“Como é fácil impor uma ditadura aqui! Por isso quero que o povo se arme”), porém logo se despede de um contexto brasileiro mais próximo das classes populares para se ater ao debate acadêmico e filosófico. A língua portuguesa se torna secundária nos diálogos diante do alemão e do inglês. Discute-se o dilema de um pensador que estuda a responsabilidade dos alemães no Holocausto, e cujas ideias passam a ser incorporadas por grupos fascistas ávidos para distorcer seus princípios.

Esteticamente, Soap também se distancia das referências estéticas do cinema brasileiro. Desde o princípio, quando aposta nas vastas imagens de perfeita nitidez e tons pastéis, aproxima-se do trabalho da polonesa Małgorzata Szumowska, da romena Adila Pintilie e do polonês Tomasz Wasilewski (a cena da banheira se aproxima bastante de Estados Unidos pelo Amor). Fala-se em Brasil, embora ele apareça apenas em menções discretas ao Corcovado no fundo do enquadramento, ou na fachada característica do Edifício Copan, em São Paulo. O povo está ausente desta discussão sobre como iluminar o povo. 

Assim, o longa-metragem corre o risco de se tornar exatamente aquilo que critica: uma forma de pensamento burguês, elitista e branco, que discorre acerca das classes populares sem lhes conferir protagonismo, fala ou ponto de vista. Uma forma de discurso que reflete acerca da melhor maneira de ajudar aos desfavorecidos, sem jamais sair de seu apartamento de classe média-alta. Uma cena exemplifica este processo, quando a personagem questiona os métodos da revolução enquanto toma um confortável banho de espuma na banheira de casa. 

Caso estes instantes fossem marcados por algum senso de autoironia (o mockumentary está próximo deste registro), talvez pudessem constituir uma deliciosa comédia autocrítica, colocando a esquerda em frente ao espelho, discutindo as falhas estruturais que permitiram a ascensão de grupos de extrema-direita. Entretanto, com o decorrer da trama, o tom se torna cada vez mais sério e exemplar. A dissidência de uma jovem participante, que prefere praticar uma política do dia a dia, ocorre com velocidade inverossímil; já as narrativas envolvendo estupro e incesto são abordadas de modo inconsequente. 

A situação se agrava nos últimos vinte minutos, quando Soap decide resumir ao espectador tudo o que acabou de contar. O capítulo 6 1/2 literalmente retoma as imagens vistas, agora explicadas via narração em off, capítulo por capítulo. A recordação é tão longa que invalida sua função de resumo: ela resgata parte considerável de cada segmento, sem acrescentar nenhuma informação nova, ponto de vista diferente, ou reflexão interessante a partir dos registros. 

Parte-se do estranho pressuposto que o público não se lembra das cenas a que assistiu uma hora atrás, ou de que a exposição de conceitos e teorias políticas, bastante didática em si própria, precisa ser esmiuçada para o espectador. Neste momento, o filme se torna enfadonho, descrente na inteligência do público e em sua capacidade de tirar conclusões próprias. O projeto se encerra na impressão de uma paródia que se estende até perder o alvo; ou então de um debate vasto, abraçando mais temas do que a montagem consegue costurar. Há vontades em excesso para pouco desenvolvimento. 

Soap (2023)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.