Antes de explicar sua controversa ação central, o filme se dedica inicialmente a delimitar o contexto socioeconômico em que ela se insere. A narrativa se apresenta, de maneira sintomática, como uma consequência do Iêmen empobrecido e alvo de guerras. Por todos os lados, há prédios em ruínas, alvos de bombas — algo que a câmera faz questão de frisar, atendo-se diante dos escombros durante alguns segundos. Devido à crise financeira, muitos trabalhadores esperam seus salários há meses, e não conseguem sustentar as famílias.
Num contexto patriarcal, religioso e conservador, o homem se torna o único provedor, o que constitui um obstáculo para Ahmed (Khaled Hamdan), junto à esposa e aos três filhos. Como cuidar de todos? Como satisfazer o pedido das crianças, que desejam itens de papelaria e ovos no café da manhã? Para piorar a situação, Isra’a (Abeer Mohammed) se descobre grávida novamente. Para o núcleo temente a Deus, a escolha pelo aborto não soa nada fácil, porém surge como a única possibilidade.
The Burdened se inicia quando a decisão pelo aborto já foi tomada. Ainda há tristeza e ressentimento, porém o casal se mostra firme na solução encontrada. O diretor Amr Gamal insiste que a prática não constitui uma saída fácil para eles, pelo contrário. Reforça-se o sofrimento e a culpa decorrentes do abandono estatal, visto como real motivador de tal penúria. Caso se encontrassem em situação mais confortável, teriam mantido o bebê. O cineasta deseja que os espectadores tenham simpatia pelos protagonistas, e se coloquem no lugar deles — algo que, em se tratando de um tema tabu, constitui uma escolha ousada por si própria.
“Mas crianças são sempre uma bênção”, insistem todas as vozes ao redor. A rigidez da moral soa ainda mais perversa diante da família claramente desesperada, vendendo seus bens e se mudando para um casebre paupérrimo. Este novo “presente de Deus” decorre de um cenário onde contraceptivos são desencorajados, e as mulheres devem satisfazer seus “deveres conjugais”, mediante a vontade do homem. Em outras palavras, elas serão culpadas se não fizerem sexo; culpadas se fizerem e não engravidarem (pois sua tarefa seria a procriação); e culpadas se fizerem sexo e engravidarem (porque oneram uma família já endividada). Não há alternativa correta para o sexo feminino.
O roteiro deseja que o espectador reflita a respeito do tema, e compreenda a sua complexidade social e política, ao invés de apenas atacar ou defender os personagens. Há um real chamado ao debate.
Espertamente, o texto passa a se concentrar nas personagens femininas: Isra’a, é claro, mas também a amiga e médica Muna (Samah Alamrani), que se recusa a praticar o aborto por motivos religiosos, e a enfermeira Abbas (Awsam Abdulrahman), mais favorável à prática. Juntas, elas se provocam numa espiral de coragem e culpa, de direitos e deveres. Procuram brechas no Corão, além de leituras progressistas dos escritos sagrados, para quem o aborto antes dos 120 dias não seria crime, pois o feto ainda não teria alma. O roteiro deseja que o espectador reflita a respeito do tema, e compreenda a sua complexidade social e política, ao invés de apenas atacar ou defender os personagens. Há um real chamado ao debate.
Esteticamente, isso se traduz numa linguagem mista entre o drama de personagens e o suspense social. O medo de serem descobertos, e os arranjos financeiros para conseguirem a intervenção médica (mesmo os abortos podem ser comprados) aproximam a obra de um thriller. No entanto, Gamal insiste que as cenas sejam mais longas, repletas de respiro e silêncios, ao invés de acelerá-las para gerar tensão. The Burdened nunca aposta na pura imersão do espectador, evitando transformar o drama da família num espetáculo emocionante. Há respeito, empatia e comedimento na maneira de observá-los.
Em paralelo, nota-se uma busca pela elegância, pelo produto polido, “com cara de festivais de cinema”. Cinéfilos acostumados a estes eventos saberão reconhecer tais obras, geralmente movidas por uma direção de fotografia cuidadosa, um trabalho refinado de som, e direções profissionais. Evitam-se os ruídos, as dissonâncias, assim como formas mais epidérmicas de cinema. O grosseiro, o surpreendente, o chocante, o sangrento estão descartados nestes títulos que se pretendem adultos porque posados e “apresentáveis”. Este é um filme que se apresentaria aos pais, no sentido de assistir com pessoas mais velhas sem o medo do constrangimento diante de cenas fortes. Aqui, elas inexistem.
Na prática, isso se traduz numa janela em scope e numa imagem de profundidade infinita, para captar as avenidas, os prédios, a paisagem iemenita. A câmera aparenta construir planos fixos, até deslizar levemente da esquerda para a direita, revelando novos personagens no cômodo, ou permitindo enxergar o cenário fora das casas. Nestes casos de opção pelo movimento de câmera, o eixo expande a compreensão do dilema individual a um sentido coletivo, inserindo-o quase literalmente na dinâmica da cidade. Não por acaso, há inúmeros planos em plongée, bastante abertos, para revelar Ahmed ou Isra’a caminhando na multidão. O diretor nunca perde de vista a comunidade ao redor.
Isso não impede que algumas sequências soem posadas em excesso, um tanto endurecidas em sua estrutura interna. Conforme a tensão se acirra, as chegadas de Muna em carro, e as intromissões da médica na casa da família ocorrem em instantes convenientes, quando os giros da câmera adquirem uma aparência teatral. O dispositivo passa a chamar mais atenção a si próprio, em provável sinal de uma vaidade de direção que penetra a bolha (bastante altruísta e humilde, em sua maior parte) do drama de personagens.
No elenco, as mulheres se encarregam pelas melhores composições. Os embates entre as amigas Isra’a e Muna produzem ótimas faíscas de conflito, assim como a intromissão da enfermeira para encontrar lacunas no sistema. Ambas estão carregadas de contradições e dúvidas, visíveis no corpo e nas expressões, sem se tornarem vítimas por isso. O filme sustenta sua força e coragem a todo instante (vide a maneira como a esposa se impõe face à agressão do marido). Já Khaled Hamdan possui uma atuação internalizada, diminuta, possivelmente voluntária, para deixar o campo de batalha às mulheres.
É uma pena que as crianças sejam praticamente esquecidas durante a trama, comportando-se de maneira inverossímil, de tão comportada, e sendo enviadas ao quarto uma dezena de vezes para que os adultos possam conversar em paz a respeito de temas espinhosos. O drama ganharia em força e complexidade caso permitisse compreender a tristeza das crianças, capazes de notar as dificuldades e a penúria enfrentada pelos pais.
De qualquer modo, o filme se encerra de maneira melancólica, quando tudo e nada se resolve na vida do casal. A gigantesca batalha pelo aborto impede a dificuldade financeira maior no futuro, mas não resolve os dilemas atuais. O plano final provoca esta forma de desconexão, um happy ending às avessas. A luta desta família continua.