The Burdened (2023)

Presentes de Deus

título original (ano)
Al Murhaqoon (2023)
país
Iêmen, Sudão, Arábia Saudita
gênero
Drama
duração
91 minutos
direção
Amr Gamal
elenco
Khaled Hamdan, Abeer Mohammed, Samah Alamrani, Awsam Abdulrahman, Shahd Algonfedy, Islam Saleem, Roaa Al-Hamshari, Omar Elyas, Fatema Adulbqawi, Ruaida Rubaih
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Antes de explicar sua controversa ação central, o filme se dedica inicialmente a delimitar o contexto socioeconômico em que ela se insere. A narrativa se apresenta, de maneira sintomática, como uma consequência do Iêmen empobrecido e alvo de guerras. Por todos os lados, há prédios em ruínas, alvos de bombas — algo que a câmera faz questão de frisar, atendo-se diante dos escombros durante alguns segundos. Devido à crise financeira, muitos trabalhadores esperam seus salários há meses, e não conseguem sustentar as famílias.

Num contexto patriarcal, religioso e conservador, o homem se torna o único provedor, o que constitui um obstáculo para Ahmed (Khaled Hamdan), junto à esposa e aos três filhos. Como cuidar de todos? Como satisfazer o pedido das crianças, que desejam itens de papelaria e ovos no café da manhã? Para piorar a situação, Isra’a (Abeer Mohammed) se descobre grávida novamente. Para o núcleo temente a Deus, a escolha pelo aborto não soa nada fácil, porém surge como a única possibilidade.

The Burdened se inicia quando a decisão pelo aborto já foi tomada. Ainda há tristeza e ressentimento, porém o casal se mostra firme na solução encontrada. O diretor Amr Gamal insiste que a prática não constitui uma saída fácil para eles, pelo contrário. Reforça-se o sofrimento e a culpa decorrentes do abandono estatal, visto como real motivador de tal penúria. Caso se encontrassem em situação mais confortável, teriam mantido o bebê. O cineasta deseja que os espectadores tenham simpatia pelos protagonistas, e se coloquem no lugar deles — algo que, em se tratando de um tema tabu, constitui uma escolha ousada por si própria.

“Mas crianças são sempre uma bênção”, insistem todas as vozes ao redor. A rigidez da moral soa ainda mais perversa diante da família claramente desesperada, vendendo seus bens e se mudando para um casebre paupérrimo. Este novo “presente de Deus” decorre de um cenário onde contraceptivos são desencorajados, e as mulheres devem satisfazer seus “deveres conjugais”, mediante a vontade do homem. Em outras palavras, elas serão culpadas se não fizerem sexo; culpadas se fizerem e não engravidarem (pois sua tarefa seria a procriação); e culpadas se fizerem sexo e engravidarem (porque oneram uma família já endividada). Não há alternativa correta para o sexo feminino.

O roteiro deseja que o espectador reflita a respeito do tema, e compreenda a sua complexidade social e política, ao invés de apenas atacar ou defender os personagens. Há um real chamado ao debate.

Espertamente, o texto passa a se concentrar nas personagens femininas: Isra’a, é claro, mas também a amiga e médica Muna (Samah Alamrani), que se recusa a praticar o aborto por motivos religiosos, e a enfermeira Abbas (Awsam Abdulrahman), mais favorável à prática. Juntas, elas se provocam numa espiral de coragem e culpa, de direitos e deveres. Procuram brechas no Corão, além de leituras progressistas dos escritos sagrados, para quem o aborto antes dos 120 dias não seria crime, pois o feto ainda não teria alma. O roteiro deseja que o espectador reflita a respeito do tema, e compreenda a sua complexidade social e política, ao invés de apenas atacar ou defender os personagens. Há um real chamado ao debate.

Esteticamente, isso se traduz numa linguagem mista entre o drama de personagens e o suspense social. O medo de serem descobertos, e os arranjos financeiros para conseguirem a intervenção médica (mesmo os abortos podem ser comprados) aproximam a obra de um thriller. No entanto, Gamal insiste que as cenas sejam mais longas, repletas de respiro e silêncios, ao invés de acelerá-las para gerar tensão. The Burdened nunca aposta na pura imersão do espectador, evitando transformar o drama da família num espetáculo emocionante. Há respeito, empatia e comedimento na maneira de observá-los.

Em paralelo, nota-se uma busca pela elegância, pelo produto polido, “com cara de festivais de cinema”. Cinéfilos acostumados a estes eventos saberão reconhecer tais obras, geralmente movidas por uma direção de fotografia cuidadosa, um trabalho refinado de som, e direções profissionais. Evitam-se os ruídos, as dissonâncias, assim como formas mais epidérmicas de cinema. O grosseiro, o surpreendente, o chocante, o sangrento estão descartados nestes títulos que se pretendem adultos porque posados e “apresentáveis”. Este é um filme que se apresentaria aos pais, no sentido de assistir com pessoas mais velhas sem o medo do constrangimento diante de cenas fortes. Aqui, elas inexistem.

Na prática, isso se traduz numa janela em scope e numa imagem de profundidade infinita, para captar as avenidas, os prédios, a paisagem iemenita. A câmera aparenta construir planos fixos, até deslizar levemente da esquerda para a direita, revelando novos personagens no cômodo, ou permitindo enxergar o cenário fora das casas. Nestes casos de opção pelo movimento de câmera, o eixo expande a compreensão do dilema individual a um sentido coletivo, inserindo-o quase literalmente na dinâmica da cidade. Não por acaso, há inúmeros planos em plongée, bastante abertos, para revelar Ahmed ou Isra’a caminhando na multidão. O diretor nunca perde de vista a comunidade ao redor.

Isso não impede que algumas sequências soem posadas em excesso, um tanto endurecidas em sua estrutura interna. Conforme a tensão se acirra, as chegadas de Muna em carro, e as intromissões da médica na casa da família ocorrem em instantes convenientes, quando os giros da câmera adquirem uma aparência teatral. O dispositivo passa a chamar mais atenção a si próprio, em provável sinal de uma vaidade de direção que penetra a bolha (bastante altruísta e humilde, em sua maior parte) do drama de personagens.

No elenco, as mulheres se encarregam pelas melhores composições. Os embates entre as amigas Isra’a e Muna produzem ótimas faíscas de conflito, assim como a intromissão da enfermeira para encontrar lacunas no sistema. Ambas estão carregadas de contradições e dúvidas, visíveis no corpo e nas expressões, sem se tornarem vítimas por isso. O filme sustenta sua força e coragem a todo instante (vide a maneira como a esposa se impõe face à agressão do marido). Já Khaled Hamdan possui uma atuação internalizada, diminuta, possivelmente voluntária, para deixar o campo de batalha às mulheres. 

É uma pena que as crianças sejam praticamente esquecidas durante a trama, comportando-se de maneira inverossímil, de tão comportada, e sendo enviadas ao quarto uma dezena de vezes para que os adultos possam conversar em paz a respeito de temas espinhosos. O drama ganharia em força e complexidade caso permitisse compreender a tristeza das crianças, capazes de notar as dificuldades e a penúria enfrentada pelos pais.

De qualquer modo, o filme se encerra de maneira melancólica, quando tudo e nada se resolve na vida do casal. A gigantesca batalha pelo aborto impede a dificuldade financeira maior no futuro, mas não resolve os dilemas atuais. O plano final provoca esta forma de desconexão, um happy ending às avessas. A luta desta família continua.

The Burdened (2023)
7
Nota 7/10

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