Autobiography (2022)

A ditadura paterna

título original (ano)
Autobiography (2022)
país
Indonésia, França, Singapura, Polônia, Filipinas, Alemanha, Qatar
gênero
Drama
duração
115 minutos
direção
Makbul Mubarak
elenco
Kevin Ardilova, Arswendy Bening Swara, Yusuf Mahardika, Lukman Sardi, Yudi Ahmad Tajudin, Rukman Rosadi, Haru Sandra
visto em
Festival de Toronto 2022

Em primeiro lugar, cabe destacar neste drama a questão do ponto de vista. Para retratar a ditadura na Indonésia, o diretor Makbul Mubarak não adota perspectiva de um dos militares, nem de alguma vítima direta do regime autoritário. A trama é narrada por alguém que transita, de maneira quase invisível, pelos dois mundos: o filho do caseiro de um general. Rakib (Kevin Ardilova) serve de motorista, assistente e secretário para o sangrento e temido Purna (Arswendy Bening Swara).

Por um lado, o garoto beneficia dos privilégios do governante, almoçando em restaurantes finos, frequentando karaokês e andando pela cidade em carros de luxo. Por outro lado, ainda é um jovem pobre, cujo pai, o antigo caseiro, se encontra na cadeia. O protagonista se identifica com os vizinhos marginalizados, com quem estuda na escola, e compreende os motivos pelos quais detestam esta liderança antidemocrática. Ao mesmo tempo, manifesta certo interesse e admiração pelo homem temido em toda a cidade. Para Rakib, a entrada na fase adulta equivale a adquirir, de maneira violenta, uma consciência de classe.

Desde as cenas iniciais, o roteiro espalha símbolos do exército e das armas pela casa. Há quadros em homenagem ao general estampando as paredes, e quando Rakib cobre a pintura com o corpo, esta imagem passa a se refletir nos espelhos. É interessante a escolha de fazer com que os ícones simplesmente não possam ser ignorados: ao dirigir pelas ruas, há faixas louvando ao político por todas as partes. Incapazes de atacar o homem verdadeiro, os habitantes do vilarejo massacram o ícone, rasgando os cartazes.

Na impossibilidade de desprezar esta convivência, Rakib abraça Purna enquanto pai substituto. Este, um sujeito com mais de 60 anos, que nunca teve filhos homens, manifesta carinho pelo adolescente, em partes por ter de fato convivido com o pai dele, em partes por considerá-lo inofensivo, ao contrário dos demais sargentos e capitães. O líder acata a presença tímida ao seu redor por considerá-la inferior: há um aspecto de desprezo na proximidade entre o rico e o pobre, o patrão e o empregado, o mais velho e o mais novo. Mima-se o jovem caseiro como quem alimenta um animal doméstico indefeso, calado e servil. 

A admiração horrorizada de Rakib por seu protetor-carrasco adquire um caráter edipiano: o caseiro precisará aniquilar a figura deste pai simbólico para seguir adiante.

Purna, personagem fascinante porque multifacetado, percebe que nunca terá apoio da população caso se apresente como carrasco sempre. Por isso, insiste na figura ambígua, ora atenciosa, em moldes do pai de família protetor, ora como sujeito de uma mão implacável. Ele encarna a extrema-direita apreciada por sua violência, ao invés de apesar dela. Não é muito difícil encontrar equivalências no caso brasileiro, é claro. A imagem do pai que cuida, e às vezes se excede na agressão porque se importa demais, constitui a base de um afeto abusivo, e tão comum à política contemporânea.

Arswendy Bening Swara efetua um trabalho excepcional a partir de um personagem difícil. Caso forçasse os traços enérgicos, criaria um vilão cartunesco. Se suavizasse demais, seria conformista com o assassino. O ator veterano encontra um meio-termo precioso e temido, pois inesperado: nunca se sabe se o dono da rica propriedade se portará como “amigo do povo” ou “marido controlador” no dia em questão. Existe um trabalho de voz, de expressões e sorrisos capazes de fazer com que os demais personagens se sintam à vontade, ou então ameaçados, dentro de uma única cena, oscilando de um polo ao outro. 

Face a uma atuação excelente, Kevin Ardilova faz o possível, ainda que disponha de recursos mais modestos. Numa sequência exigente, quando Rakib descobre a morte de um colega pelas mãos do general, o garoto demonstra a inexperiência e a dificuldade de trabalhar a rápida gradação emocional exigida. Em contrapartida, esta é uma exceção para a obra onde o estilo cru do intérprete serve ao personagem, marcado pelo misto de timidez e inadequação social. Afinal, o menino jamais se sente confortável na casa que não é sua, com o pai que não é o seu, dirigindo um carro incompatível com seu estilo de vida.

O cineasta, também jovem, em seu primeiro longa-metragem, vai além neste complexo relacionamento masculino. Mubarak cria instantes de erotismo entre os dois homens, sempre na linha tênue entre o desejo e o cuidado. Quando ambos seguram o cano da arma, na pequena aula de tiro, a montagem estende a duração do plano para que nasça um estranhamento a partir das mãos sobrepostas. Adiante, o sujeito idoso insiste em dar banho no rapaz fragilizado, esfregando suas costas apesar da expressão horrorizada do menino nu. Mesmo o clímax implica na colisão dos dois corpos masculinos, um sobre o outro.

Assim, a admiração horrorizada de Rakib por seu protetor-carrasco adquire um caráter edipiano: o caseiro precisará aniquilar a figura deste pai simbólico para seguir adiante. Aos poucos, o jovem percebe a situação atípica de prisão dourada em que se encontra, visto que a proteção imposta por Purna lhe retira a liberdade de ir e vir. Entre testemunha e cúmplice, entre filho rebelde e célula revolucionária plantada na mansão alheia, ele carrega sozinho um ideal de transformação social no país. O roteiro faz deste rapaz um herói involuntário, movido em partes por consciência política, e em partes, por instinto de sobrevivência.

Autobiography trabalha muito bem os signos que se repetem na trama, sempre ressignificados. O desprezo do general por café será retomado na fase final, assim como a aula de tiro, a busca por vândalos bêbados perto do lago, e o discurso de solidariedade num velório. É evidente o amadurecimento deste roteiro, muito bem pensado, de maneira cartesiana e cerebral, para evitar qualquer cena em excesso ou tempos mortos. Todo ícone desempenha um papel preciso, e então deturpado adiante. Mubarak revela-se um diretor do controle, ao contrário da espontaneidade.

Isso se reflete no trabalho cuidadoso de luz e câmera, utilizando planos fixos, ou leve movimentações, sempre coladas a Rakib. O filme toma precauções para que o espectador jamais se identifique com o general, nem desenvolva a mesma admiração por ele que emana de parte da comunidade. Por isso, quando o estadista começa a discursar, a câmera logo se vira ao olhar dos habitantes, e durante atos de bravura ou violência, a imagem permanece junto ao garoto, deixando o sangue fora de quadro. Politicamente, o longa-metragem demonstra uma retidão impecável, segura de suas escolhas e posicionamentos.

Ao final, o filme pode soar frio para parte da cinefilia, que espera metáforas, respiros, tramas paralelas ou alusões a um futuro. Ora, a trama se atém ao presente, fazendo com que Rakib perceba a gravidade da ditadura somente quando se encontra imerso demais dela. A construção guarda semelhanças com o cinema de horror pela maneira como trabalha o medo, a fascinação e o fetiche da morte, dentro de casa, misturada ao desejo e à sexualidade. A sequência noturna no matagal e o banho permitem visualizar Purna como pai, monstro, invasor e carcereiro, em simultâneo. 

A ditadura ganha um olhar refinado em sua estética, de luzes elegantes e enquadramentos cuidadosamente montados, porém violenta na sugestão do que existe por trás das portas, e para além dos sorrisos entre os homens fardados. O principal horror será aquele insinuado ao espectador, que poderá completar as lacunas com seu próprio imaginário de abusos e torturas. Mubarak gosta de se aproximar fisicamente dos algozes, apenas para, através da linguagem, afastar-se de seus atos e maneiras de pensar.

Autobiography (2022)
8
Nota 8/10

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