Um Lugar Bem Longe Daqui (2022)

Chapeuzinho Vermelho

título original (ano)
Where the Crawdads Sing (2022)
país
EUA
gênero
Drama, Romance, Suspense
duração
125 minutos
direção
Olivia Newman
elenco
Daisy Edgar-Jones, Taylor John Smith, Harris Dickinson, Michael Hyatt, Sterling Macer Jr., David Strathairn
visto em
Cinemas

É fácil perceber que este drama parte da adaptação de um romance, mesmo para o espectador que nunca ouviu falar na obra original, escrita por Delia Owens. Desde as primeiras cenas, os acontecimentos são velocíssimos, sublinhando a necessidade dos criadores de passarem rapidamente pelos conflitos, pois existe muita história pela frente. Esta é uma impressão típica de adaptações, que priorizam a reprodução de passagens textuais à noção de ritmo e coesão cinematográficos.

Por isso, apresenta-se o brejo e a protagonista Kya; encontra-se um cadáver; estima-se que a responsável pela morte foi a garota; ela é presa e agredida verbalmente pelos moradores da região; os investigadores não encontram pistas; porém escutam boatos num bar e decidem indiciar Kya. Até então, apenas quinze minutos de narrativa se passaram num longa-metragem que supera as duas horas de duração. Fosse uma obra original, o roteiro seria mais enxuto, e estas passagens seriam condensadas na edição. 

O pragmatismo da produção impede a construção de nuances, ambiguidades ou subentendidos, especialmente morais. As pessoas se dividem entre profundamente bondosas ou incrivelmente perversas, cabendo à pobre heroína detectar a diferença da pior maneira possível — a posteriori. Descrita desde sempre como uma vítima (abusada pelo pai, abandonada pela mãe, segregada pela sociedade), a “menina do brejo” se assemelha a um animal raro e indefeso, incapaz de sobreviver na cidade grande. A diretora gosta de enxergá-la como um bichinho de asas quebradas e olhar piedoso.

Para o espectador, no entanto, será evidente quais pessoas se encaixam em qual campo do maniqueísmo. Se o rapaz tem olhos pidonchos, faz sexo devagar sob um lençol branco, gosta de ler e entra na sua casa com cuidado, ele passa no teste da virtude. Caso seja meio abrupto, faça sexo violento e sem lençol, entre na casa sem permissão, ele será um tipo pouco confiável, possivelmente agressivo. Se o homem mais velho entra na sua cela oferecendo ajuda, ele será o advogado mais obstinado e gentil do mundo. Se o pai tem uma garrafa de álcool na mão, constitui um bêbado abusador e, enquanto tal, passa todas as suas cenas abusando dos familiares ao redor.

Um Lugar Bem Longe Daqui se assemelha a um conto de fadas, mais especificamente, às fábulas de precaução a respeito dos perigos do mundo adulto.

Graças a esta disposição particular das peças, Um Lugar Bem Longe Daqui se assemelha a um conto de fadas, mais especificamente, às fábulas de precaução a respeito dos perigos do mundo adulto. Chapeuzinho vermelho vem à mente: Kya seria a menina que se aventura pelo bosque (ou brejo), em busca da avó (ou mãe), caindo na lábia de lobos sedutores, que se vestem em pele de cordeiro para melhor seduzi-la. O lenhador, figura masculina, protetora e paterna, converte-se no brilhante advogado pro bono. Como nas fábulas originais, antes da assepsia da Disney, há sangue e violência (uma incômoda cena de estupro), para garantir ao interlocutor que a agressão do mundo lá fora é bastante real.

Por isso, a heroína aprende a se defender sozinha, ainda que o roteiro sugira que jamais possa ser verdadeiramente contente sem um homem, precisando se submeter a tipos execráveis, ou perdoar sem delongas outros que a abandonaram durante anos. Na ausência do pai, é protegida pelo advogado, e no final, pelo irmão viril e militar (“Me leva pra casa?”). Em relação a outras mulheres, nutre apenas o sentimento de concorrência (exceto pela mãe simbólica, uma comerciante). O texto hesita entre valorizar a força e a fragilidade desta menina, tentando vender uma revanche simbólica da jovem apresentada, até então, no papel de eterna criança.

A diretora Olivia Newman pesa, e muito, a mão na direção. Há beijos em câmera lenta com folhas voando pelos ares ao redor dos apaixonados; mais beijos num lago secreto e paradisíaco, ao pôr do sol, em contraluz; gansos em câmera lenta compondo a paisagem, árvores gigantescas ornando cada horizonte, além de uma trilha sonora insistente e melodramática, buscando sublinhar o caráter emotivo da trama. O resultado soa como uma mistura de A Lagoa Azul com Mogli, o Menino Lobo, coroada por um erotismo apropriado aos menores de 14 anos.

Em termos de estrutura, a decisão de situar o julgamento na parte inicial faz com que praticamente toda a trama se orquestre em flashbacks, tão extensos que, por vezes, eclipsam por completo a parte contemporânea da história. Adiante, um novo salto permitirá ao espectador perceber que mesmo a decisão no tribunal estaria se situando no passado. O texto demonstra verdadeira obsessão por grandes causas e consequências profundas, precisando ignorar trabalhos graduais e minuciosos para privilegiar mudanças súbitas — vide a maquiagem envelhecedora no terço final.

No que diz respeito ao romance, que domina parte significativa da jornada, a cineasta novamente recorre a idealizações próximas da fantasia: os rapazes belos, loiros e musculosos literalmente aparecem à porta da casa de Kya, oferecendo amor, afeto e tardes lindas juntos; e adiante, brigarão pelo coração da menina desprezada por toda a cidade. Nem sua vida afetiva poderá partir de uma iniciativa da heroína, condicionada uma vez mais aos acontecimentos ao seu redor. Até o livro de pássaros e conchas que lhe serve de fonte de renda decorre da ideia de um dos homens. Se não fosse escrito, roteirizado e dirigido por mulheres, o drama seria acusado de machismo.

Da maneira como foi concebido, Um Lugar Bem Longe Daqui costura a sensibilidade de um romance à la Nicholas Sparks (amantes lindos em locais paradisíacos e uma morte abalando a solidez do relacionamento) com a estética fácil e fantasiosa das telenovelas. Este material poderia se prestar a leituras muito mais perversas, psicologicamente perturbadas e perturbadoras, ou mais incisivas, caso caíssem nas mãos de outros criadores. Imagine o que Jane Campion, Alice Winocour, Alice Diop ou François Ozon não fariam a partir de premissa idêntica.

No entanto, os produtores se contentam com um cinema de sonhos, estimando que o público feminino, ainda que contemporâneo, ainda sonha com rapazes de corpo padronizado, num amor súbito e infinito, contra a natureza virgem repleta de animais em câmera lenta e pôr de sol numa ilha deserta. Na visão dos criadores, o público do século XXI busca por contos de fada a respeito de mulheres solitárias, resgatadas e cuidadas por um príncipe encantado. 

Um Lugar Bem Longe Daqui (2022)
3
Nota 3/10

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