Yvy Pyte — Coração da Terra (2023)

Os pensadores da fronteira

título original (ano)
Yvy Pyte — Coração da Terra (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
110 minutos
direção
Alberto Alvares, José Cury
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

Este documentário discorre bastante a respeito de si próprio. Enquanto narrador em off, um dos dois diretores, Alberto Alvares, informa que está em busca de suas raízes, retornando às terras onde nasceu. Afirma o desejo de erguer uma homenagem ao povo guarani, que luta para permanecer em terras demarcadas e tomadas pelos brancos. Revela cada intenção, justifica as escolhas, anuncia os próximos passos (as cidades que pretende visitar). Torna-se uma espécie de guia ao espectador.

O procedimento típico das reportagens televisivas pode despertar receio quanto a Yvy Pyte — Coração da Terra. Afinal, as falas aparentam direcionar a um teor explicativo. Por um lado, o discurso se dirige de fato ao espectador branco, dotado de acesso mais amplo às salas de cinema. Alvares e José Cury visam transmitir conhecimentos tradicionais das comunidades indígenas quanto à terra, à natureza e à organização social, que se pressupõe desconhecidas pelo público. Em se tratando de minorias sociais, atacadas e difamadas, o esforço se justifica.

Por outro lado, as falas logo se distanciam do mero teor didático. O autor não expõe somente fatos e dados, mas reflexões desprovidas de correspondência imediata nas cenas captadas. Em outras palavras, o som não repete o conteúdo das imagens, como de costume no formato audiovisual enlatado. Além disso, percebe-se a abertura para uma bela poesia da percepção política, intrinsecamente ligada à maneira guarani de enxergar o mundo.

O documentário visita os “pensadores da fronteira”, em conversas menos fatuais do que existenciais, especulativas.

“Hoje, eu retorno como um pássaro ao meu território de origem, e isso ilumina meu espírito”, confessa o cineasta. “O filme havia se tornado o sopro de bons ventos que nos levaram ao território de origem”, ele prossegue. “A floresta está dançando. Daqui eu posso ouvir”, declara uma liderança indígena visitada pelos criadores. Através de falas como estas, percebe-se uma afirmação muito particular sobre o modo de ser no mundo, indissociável da natureza ao redor.

Em consequência, explica-se que o Y, de “yvy” e tantas outras palavras guaranis, significa “água”, razão pela qual todos os elementos denominados por esta letra inicial estariam ligados aos rios, às cachoeiras, à chuva. Discute-se linguagem, formação de povos, resistência face à opressão. Evitando se converter num panfleto de denúncia contra a exploração dos brancos, o projeto permite que a política se insira em cada posicionamento, muito tranquilo e orgânico, durante as conversas. “Essas linhas aqui, os brancos chamam de fronteira”, declara o pai aos familiares, como auxílio de um mapa disposto sobre a terra.

Gradativamente, o documentário revela a intenção de visitar os “pensadores da fronteira”, em suas palavras. O principal interesse se encontra nas regiões de divisa, onde se criam entraves políticos, sociais, além de variações linguísticas. Por isso, viajam à Bolívia, ao Paraguai e à Argentina, para compreender como cada líder local reflete acerca do “yvy pyte”, o coração da terra, ou espaço sagrado aos habitantes originários. 

As perguntas se tornam menos fatuais do que existenciais, especulativas. Em tom bastante informal, tal qual o encontro entre bons amigos, os cineastas e os representantes das comunidades discorrem acerca da origem das terras, do individualismo marcante nos povos brancos, das diferenças entre gerações. Pinturas rupestres (“como chamam os brancos”, sublinha um líder guarani) revelam com facilidade os ocupantes originais desta tekoha, ou território. O procedimento combina as iniciativas de um pesquisador de ciências sociais com as ferramentas de um filósofo.

Os conceitos se provam mais complexos do que as imagens, bastante simples enquanto construção e produção. O projeto utiliza câmeras digitais de baixa qualidade, o que permite uma mobilidade benéfica às filmagens em locais de difícil acesso. Em contrapartida, a fotografia é prejudicada pela dificuldade de captar a riqueza dos espaços e das casas. Os céus se tornam borrões brancos, e as cenas “cropadas” pela montagem (ou seja, com cortes aproximando-se de um personagem dentro de um plano mais aberto) tornam a granulação excessiva.

Chama a atenção, igualmente, o uso reincidente dos drones para oferecer ao espectador a dimensão do espaço verde onde vivem estas comunidades. Ora, este novo modelo de stablishing shot sofre de uma impessoalidade, ou um aspecto genérico, nocivo ao resultado. Se o cinema consiste numa seleção do olhar, numa escolha do que captar face a um horizonte infinito, a abertura total da imagem nos planos aéreos (no intuito de captar o máximo possível) não contribui em nada a transmitir as especificidades de um tema ou um discurso.

Estas deficiências são atenuadas por um olhar atento às boas ofertas do acaso. Em uma cena, Alvares conversa pelo celular com um colega em língua guarani. Ao fundo, um grande outdoor com a foto de Jair Bolsonaro traz um dos lemas conhecidos da extrema-direita, que sempre buscou exterminar os povos originários: “Brasil acima de Tudo. Deus acima de todos”. Adiante, um líder espiritual fala às câmeras, ao lado da esposa calada, revelando um modelo onde o homem ainda possui primazia em relação à mulher. No entanto, esta o interrompe, trazendo informações que o companheiro desconhecia. Na sala de cinema, o público ria da ironia.

Há espaço para o acaso, para os encontros fraternos e para bastante afeto em Yvy Pyte — Coração do Terra, atenuando a impressão de um filme meramente expositivo. Esta forma de cinema se comunica com uma franqueza notável, dispensando certas vaidades e composturas que o cinema “profissional”, pensado para os grandes festivais e para o lançamento comercial, adotariam. Há poucas concessões ao gosto comum e às convenções clássicas (nada de letreiros, datas, nome dos entrevistados num canto da imagem).

Neste aspecto, nota-se uma extensão do contato destes povos com a natureza. Sim, eles utilizam a tecnologia dos brancos, mas jamais permitem que estes dispositivos se sobreponham aos espaços e pessoas que realmente visam mostrar. Tornam-se meios, nunca finalidade. Utilizam-se as criações destes povos para melhor dialogar com quem realmente precisa escutar tal discurso.

Ao contrário de certa percepção de ingenuidade ou pureza, digna do preconceito contemporâneo, os novos criadores indígenas revelam-se bastante hábeis na utilização dos recursos à sua disposição, para além do talento na criação de novas representações estéticas.

Yvy Pyte — Coração da Terra (2023)
7
Nota 7/10

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