Nossa Senhora do Nilo: “Ruanda me permitiu compreender o mecanismo do genocídio e da violência”, explica Atiq Rahimi

Depois do sucesso com o drama A Pedra de Paciência (2012), o diretor afegão Atiq Rahimi tem um novo filme exibido nos cinemas brasileiros. A partir desta quinta-feira, 5 de janeiro, o espectador descobre Nossa Senhora do Nilo (2019), drama baseado na autobiografia de Scholastique Mukasonga, e premiado no Festival de Berlim.

A história apresenta uma dezena de garotas de uma escola de elite em Ruanda. Elas lidam com conflitos comuns à adolescência dentro da instituição católica, até perceberem o crescimento da hostilidade contra a população Tutsi por parte da maioria Hutu. Aos poucos, a trama narra as raízes do que veio a ser o genocídio ruandês.

Nesta entrevista ao Meio Amargo, Rahimi explica seu interesse pela narrativa, a pesquisa e as precauções ao representar uma cultura diferente da sua. A obra tem distribuição da Pandora Filmes:

Você tem feito muitas adaptações de livros — às vezes, de suas próprias obras literárias. O que lhe interessa neste encontro de linguagens?

Quando escrevemos um romance, ficamos na solidão, concentrados, e dedicamos um tempo imenso. Construímos personagens de maneira aprofundada, na psicologia de cada um ao invés da ação. Isso me interessa muito. Quando alguém se lança diretamente num roteiro original, é claro que os produtores querem que o diretor termine o quanto antes. Não resta tempo de elaboração.
Já a dramaturgia cinematográfica costuma privilegiar a ação e as situações aos pensamentos e à psicologia. É claro que cada cineasta faz o possível para explorar o interior de seus personagens. Mas isso sempre ocorre por meio de símbolos e outros elementos de representação. O que sempre me interessa é ver que um mesmo personagem se revela de maneiras diferentes em cada arte. Uma história filmada é bem diferente da história escrita. São dimensões diferentes.
O pintor tem outra dimensão, o fotógrafo também. Cada arte revela uma dimensão particular de um acontecimento, de um personagem, que a outra arte não consegue fazer. É isso que me interessa: sou um homem exilado, tenho muitos países na minha vida, muitas línguas e muitas artes. Faço cinema, literatura, pintura, ópera, etc. Cada vez, descubro coisas novas.

O ano de 1994, quando houve o genocídio em Ruanda, coincidiu com a guerra civil no Afeganistão, quando perdi meu irmão. Os dois eventos estão ligados.

Você disse que não era um profundo conhecedor da história de Ruanda antes desse filme. Que precauções tomou para representar a história deste país?

Eu já adaptei meus próprios romances, e o que me interessa é a possibilidade de me trair. Não tenho vontade de repetir o que já escrevi. Precisa ser algo diferente. Então a fidelidade, em 100%, não tem sentido no caso de uma adaptação literária. Mukasonga disse maravilhosamente bem, no livro dela, o que tinha a dizer. Então agora era a minha vez de transmitir o que aquela história e aquelas personagens me inspiravam. Não podia ficar fiel num plano formal; era preciso encontrar uma estrutura cinematográfica.
Eu parti da história dela, das personagens dela, para em seguida buscar algo diferente. Não conhecia Ruanda, mas já tinha vontade de ir a Ruanda na época. Sabe, eu não posso voltar ao meu país de origem, o Afeganistão, porque fui ameaçado de morte por alguns cretinos. Eu queria continuar fazendo filmes. Ruanda é muito importante porque o ano de 1994, quando houve o genocídio em Ruanda, coincidiu com a guerra civil no Afeganistão, quando perdi meu irmão. Os dois eventos estão ligados. Quando me ofereceram o filme, fiz muita pesquisa, e parti por três meses a Ruanda para ver se eu poderia criar uma relação pessoal com este país, e se nós nos compreenderíamos.
Fiquei chocado, sentia que tinha nascido em Ruanda, na verdade! Eu me encontrei com historiadores, sociólogos, psicólogos e intelectuais ruandeses, além de camponeses e políticos. Não tinha a pretensão de reconstituir uma verdade histórica, porque não sou historiador, documentarista nem antropólogo. Precisava encontrar, através daquela história, uma trama universal, para compreender o mecanismo do genocídio ruandês. Ruanda me permitiu compreender o mecanismo do genocídio e da violência.

A estrutura de Nossa Senhora do Nilo é interessante, porque você elege uma dezena de personagens principais, o que traz um grande desafio à montagem.

O livro de Mukasonga era assim, com uma história coral. Eu não tinha como trazer todos aqueles personagens para o filme; seria impossível. Escolhi uma sala de aula, e dentro dela, dez meninas que compartilham o dormitório. Dentro destas dez meninas, separo cinco duplas de garotas ligadas por algum aspecto. Assim, chego às duas meninas Tutsi. Então, foi um processo por etapas. São duas meninas Tutsi, e o resto era de Hutu, porque havia um sistema de cotas nas escolas da época. Assim, eu podia explorar as raízes do genocídio, as origens deste pensamento. 1973 foi o ano em que ocorreu o linchamento dos Tutsi, e vinte anos mais tarde, ocorreu o genocídio.
No começo, não sabemos quem é Tutsi, e quem é Hutu. Isso era importante para mim: explorar o racismo, que surge através do olhar do outro, da linguagem do outro. Quando passeio na França, não tenho problemas. Mas quando alguém aponta o dedo para mim e me diz: “Este homem é afegão”, isso me separa do resto. A denominação constitui o princípio do racismo, pelo ato de delimitar o outro enquanto estrangeiro. Eu trago isso ao espectador, que não consegue determinar por conta própria quem é Tutsi, e quem é Hutu.

A denominação constitui o princípio do racismo, pelo ato de delimitar o outro enquanto estrangeiro. Eu trago isso ao espectador, que não consegue determinar por conta própria quem é Tutsi, e quem é Hutu.

Várias escolhas estéticas chamam atenção. Você traz algumas cenas em preto e branco, outras em câmera lenta, além de narrações em off, dos intertítulos, etc. De onde vieram estas escolhas?

Sei que essa estética incomoda algumas pessoas, que me dizem: “Você faz um filme sobre o genocídio, mas é estetizante demais”. Se for assim, precisamos queimar todos os quadros do Renascimento! Eles mostram a violência com uma estética precisa. Não diria que Nossa Senhora do Nilo é estetizante, e sim estilizado, o que são coisas muito diferentes. Queria trazer diferentes aspectos desta cultura, deste país e destes personagens.
Os intertítulos são uma reflexão filosófica inspirada do grande pensador francês, René Girard. Eles permitem mostrar que o sagrado não cai do céu. É a inocência que cria o sagrado. A introdução do sagrado cria proibições e tabus, e logo, o sacrilégio. Este é o fio da dramaturgia filosófica do filme. As cenas em preto e branco correspondem às viagens delas. É normal mostrar viagens de maneira bem colorida, mas isso não funcionava para mim. Então o preto e branco trouxe um aspecto de sonho.
Quanto às cenas em câmera lenta, elas são várias, mas a mais importante vem do filme de Jean Vigo, Zero de Conduta (1933). A cena com os travesseiros e as plumas me inspirou a fazer esta homenagem a uma obra que adoro, uma verdadeira obra-prima. Queria mostrar a inocência das meninas. Por isso elas vestem sempre branco, num cenário azul. Isso indica que as meninas não nascem racistas, mas a sociedade, a religião e a política as levam à violência.

Qual era a importância de introduzir a figura do homem francês, branco e de meia-idade, neste contexto?

Este era um personagem problemático, mesmo no livro. Na literatura, já vimos inúmeras vezes o clichê do colono com seu chapéu e um chicote na mão. Eu queria dar outra imagem ao colonizador, em referência ao colonialismo antropológico. Alguns colonialistas eram antropólogos, com uma parte de ingenuidade — consciente ou não. O colonialismo se beneficiou demais do trabalho dos antropólogos, e a própria antropologia nasceu em favor dos países colonizadores. Assim seria possível compreender o outro, descobrir como manipulá-lo, dominá-lo.
Hoje admiramos homens como Claude Lévi-Strauss, que fez trabalhos magníficos no Brasil, por exemplo. Mas, no fundo, quando analisamos em detalhe, mesmo que ele tentasse defender a diferença de culturas e civilizações, havia um fundo de colonialismo no pensamento dele. Li a maioria dos livros sobre colonialistas na África central no século XIX. A maioria deles parecia inocente, querendo fazer um trabalho científico. Inconscientemente, e apesar deles, seu trabalho serviu ao pensamento colonialismo. Da mesma maneira, o marxismo serviu muito ao capitalismo. Sem o marxismo, o capitalismo não teria vencido.

Hoje admiramos homens como Claude Lévi-Strauss, mas, mesmo que ele tentasse defender a diferença de culturas e civilizações, havia um fundo de colonialismo no pensamento dele.

Como trabalhou com as jovens atrizes para as cenas de violência? Me parece algo delicado, especialmente por se tratar de uma ferida recente no país.

Não foi fácil. A sociedade ruandesa fez o possível para criar uma reconciliação no povo. As pessoas não se esqueceram, claro. As feridas continuam abertas, mas houve um trabalho psicológico. Estas crianças não conheceram o genocídio de 1994, mas os pais delas, sim. Estes parentes tinham atravessado, quando pequenos, o linchamento de 1973. Havia uma cadeia de violência. Mas era necessário proteger esta nova geração de ruandeses.
Quando você passeia por lá, hoje em dia, e pergunta a alguém: “Você é Tutsi ou Hutu?”, eles respondem: “Nem um, nem outro. Sou ruandês”. Isso é algo muito forte. Quando encontrei a diretora de elenco, ela estava meio cética, e me perguntou: “Você quer quantas meninas Tutsi, e quantas Hutu?”. Respondi da mesma maneira: “Não quero nenhum dos dois. Quero ruandesas”. Ela ficou surpresa. No filme, há jovens Tutsi que interpretam Hutu, e vice-versa. Não é possível distingui-las ao olhar. Tivemos uma psicóloga que também fez um trabalho extraordinário.
E hoje vemos como Ruanda se reconstituiu, se uniu novamente, ao contrário do meu país, o Afeganistão, que não consegue se reerguer. Eu dizia à psicóloga, com lágrimas nos olhos: “Que formidável poder virar a página!”. Ela me respondeu: “Sim, é formidável virar a página, contanto que tenhamos lido a página. Para quem não leu a página, não adianta virá-la”. Essa foi uma lição importante para mim, e me ajudou a trabalhar de maneira sutil, com delicadeza, para não despertar nela os traumas, nem a raiva que representamos.

Como o público ruandês recebeu o filme?

Muito antes de partir ao Festival de Toronto, eu voltei a Ruanda para fazer uma sessão do filme lá. Estava super receoso, morrendo de medo. Fizemos três projeções, e cada vez, fiquei surpreso com a resposta deles e a receptividade dos ruandeses. Em certo momento, um jovem veio me dizer “Este é um filme ruandês”. Isso me comoveu demais.

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