Helena Ignez e Ney Matogrosso: “Você não pode sair do cinema de mutirão se quiser fazer um experimental livre, de qualidade”

Há anos, a cineasta e atriz Helena Ignez tem se especializado em produções autorais e radicais, onde discute, com formas livres, temas como a autonomia feminina e a luta contra o autoritarismo. Na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, ela apresenta seu novo filme, A Alegria É a Prova dos Nove, focado nas experiências de Jarda Ícone (Helena Ignez) e seu marido Lírio (Ney Matogrosso). Reunidos com amigos, o casal discute a liberação da maconha, a importância do orgasmo feminino e o perigo dos governos de extrema-direita.

Novamente, Ignez trabalha com a filha Djin Sganzerla, o genro André Guerreiro Lopes e o próprio Ney Matogrosso, além de colaboradores frequentes: Bárbara Vida, Dan Nakagawa, Mário Bortolotto… Em conversa com o Meio Amargo, ela explica porque o formato da trupe teatral funciona tão bem com seus trabalhos:

Helena Ignez na Mostra de Tiradentes com A Alegria É a Prova dos Nove. Foto: Jackson Romanelli/Universo Produção

Cinema de mutirão

“É um cinema de mutirão. É um cinema do momento. Você não pode sair do cinema de mutirão se quiser fazer um experimental livre, de qualidade. É difícil. Você precisa ter sua turma, seu grupo, em quem você acredita, que colabora, e que sabe o que é cinema também. Senão, você vai ser submetido a leis que te dizem como fazer o seu filme. Não tem jeito”.

E não está na hora de eu mudar para esse esquema de mercado, ele não me interessa”, prossegue a cineasta. “Não foi esse o caminho que escolhi. Tem que ser um cinema ligado no momento. Acabamos de viver o pior momento para o cinema brasileiro de todos os tempos. Realmente, não existiria meu filme sem essa configuração de turma. Mas ele deve ter um patrocínio, uma possibilidade de o autor fazer seu trabalho”.

Ney Matogrosso explica sua afinidade com esta configuração: “São esses projetos que me interessam: os mais ousados. Já recebi proposta para filmes populares, mas aquilo não me interessava, então não faço. Preciso ter interesse pelo que se trata”.

Ney Matogrosso na Mostra de Tiradentes. Foto: Leo Lara/Universo Produção

A performance

Ney Matogrosso explica que sua maior preocupação na hora de criar um personagem seria se dissociar da figura do cantor, dotado de trejeitos muito específicos nos palcos: “O cantor não pode estar na frente. Eu tenho que esquecer aquele Ney. Não posso permitir que ele se aproxime. Mas eu acho que este é o filme em que o personagem está mais próximo de mim, porque ali ele expressa alguns pensamentos que também são meus. Eu acredito em todas as coisas que falo no filme, então existe essa proximidade muito grande do personagem comigo”.

Matogrosso compara esta experiência com aquela de Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010), também de Helena Ignez em parceria com Ícaro Martins, onde interpretou o personagem-título:

“Dessa vez, ela me deu liberdade total em cena. Nem texto ela me dava. Ela aproveitava quando a gente estava conversando, fora das filmagens, e na hora de gravar, me pedia: ‘Conta aquela história de novo’. Para mim, fica muito mais fácil dessa maneira. Helena me diz que nunca me viu tão eu. Isso é claro: ali eu não estou atuando, sou eu dizendo as coisas em que acredito, conversando. Luz nas Trevas tinha muito texto escrito, e precisava ser seguido!”.

Em A Alegria É a Prova dos Nove, Helena Ignez interpreta uma sexóloga e especialista em orgasmos femininos. Ela inclusive participa de uma performance, coberta de tinta azul, remetendo ao prazer sexual. Mas nada disso seria novidade em suas produções, garante a diretora:

“Não tem transformação no meu cinema. Não vejo ele se transformar. Quando você vê os filmes, desde o começo, já enxerga aquela pessoa. Quando falo em performance durante os debates com jornalistas, penso em mim, quando menina. As pessoas me diziam: ‘Tenha modos, Helena’, porque eu saía para andar nos lugares. Meu pai e minha mãe achavam uma loucura eu me exibir! Mas não era exibição, era a necessidade de me expressar. A performance acrescentou para mim o tempo todo, desde O Bandido da Luz Vermelha (1968). E antes também”.

Helena Ignez em A Alegria É a Prova dos Nove

Nada de marginal

Quando questionada a respeito das novas produções “marginais” do cinema contemporâneo, Ignez interrompe, educada como sempre, porém assertiva:

“Eu nunca chamei meu cinema de marginal. Sou revoltada com isso. Acho que é um cinema de invenção, experimental, como Orson Welles dizia. Mas o marginal eu entendo: algum jornalista pegou do Hélio Oiticica a frase ‘Seja marginal, seja herói’. Aí o jornalista achava que a gente era herói! Ninguém gostou dessa denominação na época. A gente detestou, aliás. Mas aí o Mojica gostou, então tudo bem. Se Mojica gostou, está certo”.

Matogrosso concorda com a ponderação, e trata de separar os filmes da diretora daqueles praticados, entre outros, por Rogério Sganzerla e Carlos Reinchenbach:

“O Cinema Marginal que eu lembro era aquele feito na Boca do Lixo. Mas não acho que seja isso que a Helena faz. Em princípio, não tenho nada contra nenhum rótulo, mas eu, pessoalmente, nunca faria uma pornochanchada. Quem gosta, gosta. Mas eu não faria”. 

Helena Ignez e Ney Matogrosso em A Alegria É a Prova dos Nove

Onde está o sexo?

Repleto de imagens de vulvas, pênis e vaginas, A Alegria É a Prova dos Nove não tem nenhum problema com a nudez e a discussão intelectual sobre a sexualidade plural. No entanto, nenhum filme recente de Helena Ignez traz cenas de ato sexual. Quando questionada a respeito, ela confessa que esta seria “uma ótima pergunta”:

“Essa é uma das características minhas: tenho na mente que o sexo é cinematograficamente feio. É como rezar. Não é cinematográfico, na minha opinião. Temos nossas opiniões, que não são perfeitas. E vou dizer de quem peguei essa informação: novamente, de Orson Welles, que dizia isso. Eu também não fumo em cena, nunca. São minhas contradições”.

Helena Ignez e Ney Matogrosso em A Alegria É a Prova dos Nove

Otimismo na política

Ambos concordam que a chegada de um governo progressista traz esperanças na viabilização das pautas defendidas pelo filme e por seus personagens, sobretudo no que diz respeito à autonomia feminina e à libertação da cannabis, representada pelo Padre Ticão, que realmente militou por esta causa. André Guerreiro Lopes, no papel do mordomo Antônio, inclusive usa um adesivo com o rosto de Lula no paletó. Mas Ignez garante que esta foi uma coincidência, visto que as filmagens ocorreram muito antes da eleição presidencial:

“Eu vi muitas coincidências no filme. Essa história do Padre Ticão ser fundador do PT me deixou admirada! Quando fui estudar, pensei que iam reclamar, que eu estava puxando saco do partido! Mas não é verdade. Eu não cito nomes, só tem aquele retratinho ali, na roupa do André. O filme é altamente irônico, mas é amoroso também”.

Em um dos diálogos do filme, Lírio (Matogrosso) anuncia que a extrema-direita estaria acabando, e ventos progressistas chegariam em breve. No entanto, o ator sublinha: “O filme foi feito muito antes deste governo [Bolsonaro]. Então era uma premonição, algo latente, dizendo que aquilo iria acabar. E acabou. Não sei dizer, mas foi uma premonição mesmo. É algo que eu falei da minha cabeça, não tinha um texto escrito”.

Inclusive, ele comemora o novo governo: “Agora teremos pautas mais libertárias. Esse excesso de preocupação com o sexo alheio, com o pau do outro, tende a acabar. O outro só pensava em pau. Mas acredito que agora isso vai acabar, e as pessoas vão voltar a poder ser o que bem entenderem”, conclui. 

A Alegria É a Prova dos Nove ainda não tem data de estreia definida no cinema brasileiro.

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