“A imagem do sexo não é sensacionalista nem pornográfica”, explica João Borges sobre Rua Guaicurus

Em Belo Horizonte, a rua Guaicurus reúne um enorme centro de prostituição, que existe desde os anos 1950. No interior dos hotéis, dezenas de mulheres recebem clientes em quartos minúsculos, diariamente. O diretor João Borges decidiu investigar esta rotina profissional em Rua Guaicurus, uma reunião entre documentário e ficção.

O cineasta combina atores profissionais e trabalhadoras do sexo, reconstruindo experiências reais colhidas junto às prostitutas durante mais de três meses de pesquisa. O belo filme, que chega aos cinemas em 14 de julho, promove um olhar afetuoso a estas mulheres, naturalizando nossa relação com o sexo para além de julgamentos morais. O Meio Amargo conversou em exclusividade com João Borges sobre o filme:

Por que quis trabalhar na fronteira entre documentário e ficção?

Foi uma escolha possível. A gente teve um orçamento muito baixo: ganhamos um edital de curtas-metragens, de R$ 90 mil, e fizemos o longa. Foi um trabalho de muita dedicação da equipe, que acabou assumindo vários papéis. Com esse orçamento, tivemos apenas doze dias de gravação. Tivemos que organizar para o filme todo acontecer neste período, então o roteiro se fez necessário. Depois, teve a questão dos clientes, que não estavam dispostos a aparecer no filme — muitos eram casados, comprometidos. Consequentemente, entendi que precisaria trabalhar com atores. Escutei muitas histórias das trabalhadoras do sexo: elas me contaram quando chegaram no local, a sensação de abrir a porta do quarto aos clientes pela primeira vez. Algumas vomitaram, outras ficaram no quarto durante semanas sem a coragem de abrir a porta.
Conheci a Ariadna, atriz que fez uma peça de teatro dentro do hotel da Rua Guaicurus. Eu a convidei para participar. Por isso, a escolha se fez aos poucos. Era uma decisão estética, mas também uma maneira de ter maior controle e realizar o projeto em doze dias. Assim eu consegui trazer clientes e contar as histórias que tinha escutado. Mesmo as não-atrizes vivenciam experiências e histórias que escutei de outras mulheres. Isso trouxe liberdade para elas, que não contavam apenas as próprias histórias.

Muitos filmes ditos híbridos trazem cenas claramente documentais, incluindo entrevistas diretamente às câmeras, por exemplo, com outras claramente encenadas, como reconstituições. No caso de Rua Guaicurus, é difícil saber o que é ficção ou documental. Por que fez esta escolha?

Esse foi um jogo. Quando a gente identifica muito claramente quando está sendo atuado, existe uma quebra na diegese — no meu entendimento, pelo menos. No final das contas, não importa muito determinar essas fronteiras. Quando mostrei o filme aos amigos aqui em casa, eles me perguntavam: “Quem é ator? Quem não é ator?”. Eu pedia para eles me dizerem o que achavam. Assim eu via se o dispositivo funcionava ou não. Gosto desse limbo das linguagens.
De qualquer maneira, eu garanto que tudo o que está dito ali é altamente fiel à realidade que elas vivem ali dentro. Isso está sendo reencenado, mas encontra total respaldo nos fatos. Além disso, gosto de dirigir não-atores. Antes das filmagens, tem um longo processo de três meses de preparação para eles chegarem com uma história pretérita: de onde vieram, com qual emoção chegam. Trabalhamos isso para eles chegarem ao set quase sem a necessidade de dirigi-los. Eles já sabem bem que são no filme; já fizemos um recorte dos personagens. 

Como definiu onde posicionar a câmera, e o grau de proximidade dos corpos? Sempre existe o risco de soar invasivo, ou de ficar longe demais e espiar, na posição de voyeur.

Eu tentei trazer o máximo de naturalidade para as cenas. Tenho poucos planos de detalhe; em geral são planos médios. Além disso, a gente não tinha muito distanciamento. Os quartos são minúsculos, e grande parte da história se passa dentro dos quartos. Tivemos que trabalhar confinados, portanto muitas escolhas foram circunstanciais. Muito claramente, vimos como o orçamento influencia esteticamente no filme e na direção. Eu me situei com a menor equipe possível dentro dos quartos.
Busquei um tom de proximidade, mas ao mesmo tempo tem um voyeurismo ali. A gente está com a porta fechada, e muita gente tem curiosidade de descobrir o que ocorre nos quartos quando a porta está fechada. A gente fez alguns planos e contraplanos: às vezes repetimos a cena, porque tínhamos uma câmera só. Assim, teria mais recursos para a montagem. Gosto quando a câmera está olhando para o personagem na mesma linha natural na observação — sem plongées nem contraplongées, para não emitir nenhum tipo de julgamento através da imagem. Os planos angulados geram um tom mais opressivo, ou de admiração, conforme é filmado de cima para baixo, ou de baixo para cima. O filme tem esse mérito: ele não julga os personagens.

A representação do sexo e da nudez costuma ser acompanhada de muito moralismo. A imagem de um pênis ereto costuma ser associada popularmente à pornografia. Como enxergava estas questões?

Quando comecei o processo, tudo era muito novo para mim. Passei três meses em pesquisa, e almoçava com as trabalhadoras do sexo no topo de um dos hotéis. É uma grande mesa com todas as mulheres sentadas, de peito de fora, de calcinha. A certa altura, eu nem observava mais a nudez dos corpos, de tão naturalizado que isso se torna naquele contexto. Talvez isso tenha se refletido no filme, devido à minha experiência. A nudez ficou naturalizada pelos quartos, pelos corredores. A imagem do sexo não é sensacionalista nem pornográfica.
Existe uma única imagem pornográfica na televisão. Quando elas conversam dentro de um quarto, existe a imagem de um boquete. Você vê claramente que aquela imagem destoa, pela maneira de filmar, do restante do filme. Devido a essa imagem, tivemos uma classificação indicativa diferente no filme. Ele foi classificado impróprio para menores de 18 anos, o que limita na hora de vender. Mas banquei aquilo ali, porque achava que esta imagem trazia o contraste entre duas visões: uma delas é utilitarista quanto ao sexo, e a outra traz a visão de um cotidiano de trabalho. O sexo é uma ferramenta de trabalho, mas temos um jeito afetivo de filmar. O filme apresenta um ofício no cotidiano: eu poderia estar filmando um sujeito com uma enxada trabalhando na roça, por exemplo.

As trabalhadoras do sexo mencionam muitas violências que sofreram no passado, mas você prefere que isso seja citado, ao invés de representado em imagens. Por quê?

Isso foi o possível. Não sei se eu conseguiria, a partir de uma dramatização, mostrar essa violência. A violência ocorre ali em diversos níveis: para mim, a cena do rapaz que decide realizar um fetiche é violenta. Não é algo físico, mas ainda assim, é forte. Pouco depois das filmagens, uma garota foi estrangulada e assassinada naquele lugar. Esse nível de violência acontece uma vez a cada três anos. Depois, existem violências quase banalizadas, incorporadas ao cotidiano. Alguns clientes trancam a porta, e certos hotéis chegaram até a colocar alarmes de emergência no interior dos quartos. Assim o segurança pode chegar rápido e arrombar a porta. O filme tem a intenção de mostrar o cotidiano ordinário daquele trabalho — talvez a cena de grande violência fugisse ao tom do filme. Para ser sincero, nem foi uma decisão muito consciente, do tipo “Preciso evitar cenas de violência”. Chegamos a cogitar uma cena com a polícia entrando naquele espaço. Isso acontece com alguma frequência, de maneira bruta. Eles não abusam das meninas, mas efetuam jogos de poder ali. Mas é isso: foi um filme feito com R$ 90 mil, rodou em vários festivais, e agora está chegando às salas de cinema. É um pequeno milagre.

O trabalho de som é muito cuidadoso no filme. De que maneira imaginou este espaço sonoro?

O som foi algo especial. Muitas vezes o captador foi ao lugar, captou sons sem câmera mesmo, para criar uma paisagem sonora. É algo dificílimo: todos aqueles hotéis estão num centro nervoso de Belo Horizonte, com muitos ônibus e carros. A gente conseguiu colocar lapelas muitas vezes, mas quando todas as mulheres estão comendo juntas, por exemplo, foi bem difícil. Apesar dessas circunstâncias, acho que conseguimos fazer um trabalho primoroso de pós-produção. Demoramos para limpar os sons, destacar as vozes. Teve um trabalho de captação do Victor Brandão, muito minucioso. Apesar de a gente filmar à noite, para conseguir um ambiente mais limpo, depois a gente introduzia na segunda pista o som ambiente da rua. Em paralelo, introduzimos trilha sonora para aproximar ainda mais da relação com a ficção. 

Teve algum receio por ser um diretor homem falando de uma realidade intimamente feminina?

Quando eu estava no processo de criação, essas questões de lugar de fala ficaram mais exaltadas. Lembro de um dia em que eu saí na rua, em crise. Talvez tenha sido por causa da minha posição de homem branco hétero, mas também estava relacionado ao discurso. O que eu tinha a falar sobre a vivência daquelas meninas? Isso aumentou o meu senso de responsabilidade. Só tinha verba para um mês de pesquisa, mas acabei ficando três meses, indo sozinho e sem verba, para chegar ao ponto de domínio daquela realidade afetiva. Fui na casa das mulheres, conheci os filhos. Fomos a festas juntos, rimos juntos, choramos juntos. Consegui realmente criar um elo de amizade. Agora vamos nos reencontrar, e esses encontros são sempre uma alegria. Já fui questionado por isso, mas hoje estou muito à vontade. Na sessão em que elas vieram e essa pergunta surgiu, elas me legitimaram completamente.
Compreendo que existe o lugar de fala e o lugar da escuta. No meio dos dois, existe o lugar de falha também. A gente falha, e preciso me permitir falhar. Acho que existe um trabalho de empatia: imagina se eu, sendo um homem branco de classe média, só pudesse falar dessa realidade? Se tivesse que ficar preso à minha bolha? Eu posso ser empático, chegar a outro lugar. O filme foi muito transformador na vida das pessoas que participaram. Depois disso, elas criaram uma revista, o Clã das Lobas, e fizeram uma ONG. O filme foi exibido no Encontro Nacional das Prostitutas do Brasil. Sabia que esse questionamento da direção masculina nunca foi levantado por elas? Isso é algo nosso, que trabalhamos com cultura, e estamos atentos a questões identitárias. Nem os donos dos hotéis, nem as profissionais do sexo pensaram nisso. No início, eu levei com muito cuidado, mas hoje me sinto legitimado de estar no lugar onde estou.

O filme foi feito há alguns anos, e desde então, o Brasil mudou muito, inclusive na relação com as mulheres. Como avalia o fato de a produção estrear agora?

Voltei para a rua Gauicurus agora para divulgar o filme. É engraçado porque a polarização que tomou conta do país se alastrou por todos os lugares, inclusive ali. Algumas trabalhadoras do sexo são bolsonaristas, assim como vários clientes. A Rua Guaicurus sobrevive desde os anos 1950. Muita gente diz que não vai ali, e ela se encontra numa zona moralmente invisível de Belo Horizonte. Geralmente, as pessoas que estão ali são mais conservadoras. Às vezes os homens não conseguem conversar com as companheiras e falar dos seus desejos, então recorrem às prostitutas. É algo prático: são 30 reais, vinte minutos para uma relação.
É muito doido, porque parte da minha família bolsonarista assistiu a uma sessão do filme. Eles amaram o filme! Eu publico algo nas redes sociais a respeito, e eles replicam. É incrível como o filme supera essa camada e chega a uma humanidade. Você passa a enxergar os seres humanos que estão ali, porque o filme evita julgamentos. Ele é conciliador nesse sentido, e de certa maneira, é isso que precisamos fazer. A gente tem posições diferentes mesmo, em termos políticos. Em alguns casos, a atitude conservadora pode ser mais favorável, em outros, a atitude mais liberal e de esquerda será mais favorável. O que prevalece é o diálogo, e no atual momento, o diálogo foi interrompido.
Rua Guaicurus não levanta uma bandeira. Entendo que o filme tenha um viés mais de esquerda: ele traz um olhar humano, sem julgamentos. Mas ele é capaz de passar por essas questões políticas contemporâneas sem cair em nenhum dos polos. Ele pode trazer um entendimento que supere os julgamentos das relações prostitutivas. A gente tira o romantismo de Hilda Furacão e Cintura Fina, que giram muito na rua Guaicurus, mas não refletem a realidade cotidiana das trabalhadoras. Tive medo que pudessem censurar o filme, e não deixar que chegasse ao cinema. Por enquanto, nada. Vamos ver o que vai acontecer quando chegar aos cinemas. Se der alguma polêmica, melhor, porque assim ele estoura nas redes e nos jornais!

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