Mariëtte Rissenbeek: “Na Alemanha, existe a tendência a fazer menos obras, mas com orçamento maior”

Desde 2019, Mariëtte Rissenbeek é mais conhecida como diretora executiva do Festival de Berlim, responsável por diversas mudanças estruturais no evento. No entanto, a holandesa trabalha há 37 anos como distribuidora de filmes na Alemanha, e há 26 anos como produtora de filmes, de programas de televisão e peças de teatro, o que lhe permite ter ampla perspectiva acerca da cadeia produtiva do audiovisual europeu.

Em 2023, ela integrou o júri da crítica na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ajudando a escolher os premiados desta edição. Ela conversou com o Meio Amargo sobre esta experiência e sobre os desafios atuais do cinema europeu e brasileiro.

Sempre apreciei a atenção que o Festival de Berlim confere ao cinema brasileiro. Como percebe esta produção nos últimos anos?

No meu trabalho anterior, pude colaborar com produtores brasileiros-alemães, incentivando as coproduções entre os dois países. Isso me permitiu ter um olhar bem próximo aos projetos desenvolvidos no Brasil. Algo que me parece particularmente interessante é a diversidade dentro de um país tão grande. A população é tão diversa que isso se reflete em obras totalmente distintas. Podem ser filmes muito poéticos, como as obras de Karim Aïnouz, ou pode ser Tropa de Elite. Esta é uma característica especial. Quando você pensa no cinema alemão, sempre vêm à mente os mesmos nomes, como Wim Wenders. Mas no cinema brasileiro, a diversidade é muito maior.

Welket Bungué, Mariette Rissenbeek, Enrica Fico Antonioni, Bárbara Paz e Lenny Abrahamson — o júri da 47ª Mostra.

Percebe temas recorrentes, ou recursos estéticos que marcam estes filmes brasileiros?

Entre os vários filmes que eu pude ver, percebo a ênfase dada ao realismo nas produções. As histórias são diretamente baseadas e enraizadas na vida cotidiana dos cidadãos. Isso produz efeitos dramáticos peculiares, porque a tendência realista coloca em paralelo as classes mais ricas e as classes desfavorecidas. Ao mesmo tempo, o Brasil tem um uma vivacidade particular e pronunciada. Logo, os projetos tendem a reproduzir estas duas características.

Enquanto espectadora e jurada da Mostra, que critérios guiam a sua apreciação? É preciso ter uma temática atual e urgente, uma estética arrojada?

Para mim, é fundamental que o filme me comova. Não me considero uma espectadora muito intelectual. Sei que, para algumas pessoas, referências cinéfilas e aspectos históricos acabam se tornando fundamentais. Mas para mim, eu preciso apenas me conectar com a obra. Isso pode vir de um tema político, ou de algo que eu reconheço em minha própria família, por exemplo. Não acho necessário que um bom filme traga um comentário político assertivo. Temas menores, mais íntimos, podem ser igualmente interessantes, como as histórias de amor, que podem nos levar a uma identificação pessoal. Por isso, enquanto jurada, não procuro nada específico, mas preciso de um filme significativo. É claro que este significado pode ser diferente para cada um.

Percebo a ênfase dada ao realismo nas produções brasileiras. As histórias são diretamente baseadas e enraizadas na vida cotidiana.

Entre críticos brasileiros, noto a tendência a supervalorizar filmes com grandes temas sociais. 

Eu entendo a consideração a respeito da urgência de alguns temas, mas não acredito que o tópico deva ser o único motivo para assistir a um filme. Acredito que a obra deva ser forte em si mesma. Ao mesmo tempo, entendo que possa ser muito difícil, ao produzir um filme, concretizar exatamente o que se tinha em mente no início. Tenho trabalhado como produtora há algum tempo, e sei que, às vezes, você pode ter todos os elementos em mãos, mas no final, o resultado na tela se torna totalmente diferente. É preciso poder reconhecer: “Não fiz exatamente o que eu queria”, mesmo que o tema esteja presente. No final, os filmes precisam ser fortes e convincentes para além do tema. Estas são as obras que me interessam produzir, pelo menos.

O Brasil tem sofrido uma crise na distribuição e exibição desde a pandemia. Não conseguimos ainda trazer o público de volta, nem para as comédias populares. Como está a situação na Alemanha?

É interessante ouvir isso, porque ainda não analisei a situação aqui no Brasil. Na Alemanha, depois da pandemia, as grandes comédias voltaram aos cinemas, e elas têm funcionado muito bem. A situação é mais complicada para os pequenos filmes independentes reconquistarem a atenção do público. Na Alemanha, acredito que menos filmes serão feitos num futuro próximo. Existe a tendência de fazer menos obras, mas com orçamento maior para cada uma.

Percebemos que a produção de uma grande quantidade de filmes acaba dificultando a tarefa da exibição, para encontrar espaço a cada um deles. Além disso, é preciso ter mais recursos de marketing para que os espectadores descubram a existência destes filmes. Então, em consequência, acredito que menos produções serão feitas no circuito independente – algo que claramente não deve afetar as comédias populares da mesma maneira. Acredito que seja uma boa estratégia. Senão, gastamos uma energia imensa para colocar nas salas de cinema alguns filmes que ninguém vai ver. Não sei se essa estratégia se aplicaria ao Brasil, até porque você afirmou que as comédias populares estão em baixa.

Na Alemanha, percebo que o público das salas de cinema se tornou muito mais jovem. Desde a Covid-19, as pessoas mais velhas não voltaram ao circuito tradicional.

De fato, estamos todos nos questionando o que realmente atrairia o público às salas brasileiras agora.

Na Alemanha, percebo que o público das salas de cinema se tornou muito mais jovem. Desde a Covid-19, as pessoas mais velhas não voltaram ao circuito tradicional, porque acreditam que os espaços fechados não são bons à saúde. Provavelmente, os espectadores jovens estejam procurando por formatos e conteúdos diferentes daqueles buscados pelos adultos. Ao mesmo tempo, os adultos nunca foram o público-alvo das comédias alemãs — sempre foram os jovens que alavancaram estas produções. Não consigo julgar a situação brasileira, mas valeria analisar os dados. Até porque, pelo que você me disse, as comédias norte-americanas continuam funcionando bem.

Mencionamos os lançamentos em streaming, e sei que esta tem sido uma questão fundamental a grandes festivais, tanto Berlim quanto a Mostra. Como enxerga a evolução do debate?

Por um lado, acredito que será impossível, a curto prazo, excluir todas as produções originais de plataformas de streaming. Isso limitaria demais a variedade de filmes que podemos selecionar. Por outro lado, percebo que as plataformas estão investindo cada vez menos dinheiro em produções alemãs. Além disso, estes serviços precisam de um esforço imenso de marketing para as pessoas assistirem a um determinado filme. Por isso, não acredito no streaming enquanto melhor maneira de se conectar com o espectador, até porque os mesmos dilemas se reproduzem no meio digital.

Como fazer o público descobrir a existência de um determinado filme e querer vê-lo? Pelo ponto de vista de um festival, sabemos que muitas produções para o streaming têm um ótimo elenco, bons diretores, e seria uma pena não contar com elas na seleção. Na Berlinale, decidimos que caso uma produção seja concebida para o streaming, ela precisa ter lançamento nos cinemas também. Senão, não a escolhemos para a competição. Mas para as mostras paralelas, às vezes também incluímos alguns títulos que não foram concebidos para a exibição em salas.

Decidimos retirar a separação nas categorias de melhor ator e atriz, para implementar a categoria de melhor atuação. Isso já deveria ter acontecido há muito tempo.

Gosto de algumas evoluções importantes da Berlinale, como a busca por paridade entre homens e mulheres na direção, e a supressão das categorias de melhor ator e atriz.

Estas foram decisões muito boas. Decidimos retirar a separação nas categorias de melhor ator e atriz, para implementar a categoria de melhor atuação. Isso já deveria ter acontecido há muito tempo. Não entendo como podemos ter categoria de melhor direção, melhor roteiro, sem qualquer distinção de gênero, mas na hora da atuação, dividir estes profissionais. Isso também favorece a recompensa a artistas transexuais, que não costumavam ser apreciados nestas categorias, por causa do binarismo. Para a Berlinale, isso deu muito certo. No começo, as pessoas reclamavam que no futuro, apenas homens ganhariam, e isso prejudicaria as mulheres. Mas não é isso que aconteceu no festival: os jurados têm sido bastante cuidadosos, e tivemos mais mulheres premiadas do que homens. 

Quanto à cota para diretoras mulheres, nós estamos em uma boa direção, mas ainda está longe de ser o suficiente. Temos selecionado aproximadamente 1/3 de filmes dirigidos por mulheres na competição. Esta também é a porcentagem de mulheres que inscrevem seus filmes em Berlim. O crescimento destes números tem sido muito lento e difícil. Temos várias mostras dentro do festival com programadores favoráveis às cotas para mulheres. Pessoalmente, não defendo esta medida. Acredito que esta evolução precisa ser natural. Senão, você começa a selecionar filmes apenas porque são feitos por mulheres, e não porque são bons. Isso é algo delicado. Normalmente, também defendo em todas as minhas falas públicas que as mulheres sejam diretoras dos festivais, e não apenas os homens. Renata de Almeida [diretora da Mostra de São Paulo] é mulher, mas em Veneza, Cannes, San Sebastián, Toronto e quase todos os festivais, a direção cabe aos homens. A presença de uma mulher na direção de festivais mostra como nós somos capazes de obter o mesmo sucesso e a mesma importância de um homem neste cargo.

Temos várias mostras dentro do festival de Berlim com programadores favoráveis às cotas para mulheres. Pessoalmente, não defendo esta medida.

Como percebe a função social de um festival como Berlim e a Mostra nas grandes cidades em que se inserem?

Berlim é uma cidade muito mista, com uma população diversificada — inclusive nos interesses. Isso significa que você pode alcançar grupos diferentes de espectadores, o que cria uma rede de público específico do festival. Mas é claro que alguns espectadores não têm o costume de frequentar os cinemas, e também não vão à Berlinale. Ao mesmo tempo, algumas pessoas frequentam o festival para ver qualquer filme que esteja passando naquele momento, porque desejam apenas integrar a vivência do festival. As coisas funcionam bem assim, e esta forma de comunicação é fundamental também. Temos buscado um apelo com um público mais amplo.

Tenho o projeto sobre uma seleção de curtas-metragens em torno do tema do futebol. Acredito que, se você oferecer algo a mais para o público jovem — e o futebol é extremamente popular na Alemanha —, talvez conquiste também as pessoas interessadas em futebol a princípio, mas não muito em cinema. Eles podem descobrir a empolgação e o interesse de visitar um festival de cinema, e assistir aos filmes com outros jovens, juntos, na tela grande. Tentamos desenvolver novos projetos para expandir o alcance do festival de Berlim. Precisamos alcançar o público, e também formar públicos novos. Hoje em dia, eles têm uma imensidade de opções pela cidade, então precisamos oferecer motivos para privilegiarem o festival, ao invés de saírem com os amigos ou ficarem em casa jogando videogame. É preciso nos focar neste segmento com ferramentas específicas de marketing.

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