Miguel Gomes: “A maior parte dos filmes feitos na pandemia não é muito interessante”

Miguel Gomes é conhecido por um cinema muito particular. O cineasta português nada contra a corrente, tanto do cinema popular quanto dos grandes filmes de festivais, preferindo brincar com as formas, as texturas, a linguagem, o estilo de atuações. Desde o começo dos anos 2000, fez obras marcantes como Aquele Querido Mês de Agosto (2008), Tabu (2012) e a ambiciosa trilogia As Mil e Uma Noites (2015).

Agora, chega aos cinemas brasileiros com sua obra mais leve e despretensiosa, retomando de certo modo o afeto pelo mês de agosto: Diários de Otsoga (ou “agosto” ao contrário), concebido e filmado durante o auge da pandemia de Covid-19. Gomes e Maureen Fazendeiro, diretores, isolaram-se com colegas técnicos e atores, decidindo ao longo dos dias a história que gostariam de contar. Deste modo, surgiu a viagem de três amigos (Crista Alfaiate, Carloto Cota e João Nunes Monteiro) que decidem criar um borboletário juntos, até o relacionamento do trio sofrer desgastes. Para a surpresa do espectador, a narrativa é contada do último dia do mês até o primeiro, o que modifica a percepção da história e justifica o título de trás para frente.

O Meio Amargo conversou com Miguel Gomes sobre este filme fictício baseado em acontecimentos reais. Ele explica sua relação com a película 16mm, a paixão pelas salas de cinema, assim como a decisão incorporar ao resultado os imprevistos reais das filmagens:

Por que quis fazer a brincadeira de interpretarem personagens de si mesmos? Gosto da cena em que os atores ficam sozinhos e filmam o que desejam.

Essa cena dos atores sozinhos poderia não ser verdade. Apesar de eu ter uma relação próxima com o que se passava nas nossas vidas, nada daquilo é documental. É tudo ficção, mas criado a partir da realidade que estávamos vivendo. Por acaso, a cena dos atores sozinhos foi verdade. Não sabíamos que seria assim. Isso teve a ver com uma situação concreta, que também vemos no filme: um problema de saúde ligado à gravidez de Maureen, e à nossa filha. Nesse dia, tivemos que sair e não pudemos filmar. Decidimos delegar esta tarefa aos atores. Quando chegamos à casa, eles estavam ainda filmando, e nunca soubemos de fato o que estavam fazendo. Apenas quando vimos as imagens que fizeram, descobrimos o resultado. Eles filmaram no banheiro do nosso quarto, e estava uma grande bagunça. Então percebemos que tinham feito uma cena ali.
Quanto à equipe que trabalha comigo, aparecendo como eles próprios, ou uma caricatura deles próprios, é algo que foi acontecendo sem ser calculado. Isso ocorreu ao longo dos meus filmes, por questões práticas: às vezes não tinha mais ninguém para filmar naquele dia. Então, tenho que filmar algo. Às vezes filmo paisagens, mas gosto de filmar pessoas. Filmo as pessoas que estão comigo, fazendo o filme. Não sei o porquê, mas quase todos os técnicos de cinema são bons atores. Não tenho uma explicação para isso, mas é um fato. Eles já sabiam, quando os convidamos a fazer o filme, que se arriscavam a entrar no filme como atores. Eles acharam algo normal, aceitaram. Quando entramos na casa, não sabíamos que filme seria esse. Depois entendemos que ele tinha a ver com essa experiência de voltar a estar com o pessoal do cinema, com amigos. Depois do primeiro confinamento em Portugal, a coisa de voltar a estar juntos foi o motor da decisão de fazer o filme, e acabou sendo o motor daquilo que mostramos no filme.

Os diretores Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro

Os primeiros filmes a respeito da pandemia despertavam o receio de serem obras tão urgentes quanto datadas. Como enxerga este cinema pandêmico?

Acho que a maior parte dos filmes feitos nesse período não é muito interessante. A maioria são reflexões impressionistas de diretores fechados dentro de suas casas, mostrando que estão tristes e isolados. Mas todos nós já sabemos disso, não precisamos assistir ao filme. Houve muitos filmes desse gênero. Há um curta brasileiro, República, da Grace Passô, que é incrível. Mas a maioria era exatamente aquilo que esperávamos desses filmes, o que deixa o sabor superficial de algo que não vai muito longe. Eles mostram o que todos já sabem; mostram o senso comum. Não tem grande interesse.
Ao fazer este filme, tivemos o cuidado que fosse um retrato desse tempo de confinamento, mas ao mesmo tempo, que fosse mais sobre estar com pessoas, viver em comunidade. Não é propriamente sobre a Covid. Em especial, não quisemos choramingar sobre a Covid. Paradoxalmente, foi uma filmagem em confinamento, mas também um grande espaço de liberdade na casa onde todos ficamos. Não era uma liberdade física, ou seja, não podíamos pegar a prancha de surf, mas uma liberdade artística, uma comunhão. Pudemos inventar um filme que não estava pré-estruturado antes.

O digital expõe tudo. Mas o cinema não é feito para ver tudo: ele é feito para ver algumas coisas, e não ver outras coisas.

O digital costuma ser associado à agilidade, ao cinema caseiro e barato. Por que preferiu trabalhar com o 16mm?

Com os filmes em 16mm, podemos filmar uma natureza — uma árvore, as sombras que ela projeta no chão, no muro atrás, no espaço. Podemos filmar o vento que agita as folhas da árvore, e isso se torna um acontecimento orgânico, físico. Na película, a relação entre a luz e as sombras é completamente diferente do que existe no digital. É como colocar os óculos e enxergar melhor. O digital é algo mais frio, clínico. Já a película reinterpreta tudo. Ela permite expor muito, enquanto o digital expõe tudo. Mas o cinema não é feito para ver tudo: ele é feito para se ver algumas coisas, e não ver outras coisas. A Kodak sabe disso melhor do que nós: é preciso ter confiança na Kodak. A película permite filmar a beleza e a graça do mundo de maneira natural, enquanto seria preciso muito mais esforço com o digital. Pelo menos, é o que eu sinto, muito fisicamente, como espectador. 

Diários de Otsoga se equilibra entre a aparência naturalista e as cenas próximas da fantasia. Como encontrou este tom?

No fundo, são as duas pontas do espectro do cinema, que vai de um mundo mágico, completamente artificial, com regras próprias e cores distintas daquelas que se vê no mundo real, à possibilidade de registrar as coisas de maneira quase fotográfica, como existe no mundo. Desde o início do cinema é assim: Méliès contra Lumière. Penso em O Mágico de Oz. Neste filme, uma menina vive no Kansas, até ser transportada por um ciclone ao mundo chamado Oz, em Technicolor. O local tem regras físicas e cromáticas totalmente diferentes do mundo em que ela vive. É preciso filmar o Kansas e é preciso filmar Oz quando se faz cinema.
Mas também existe uma razão prática: o namorado da atriz, Crista Alfaiate, é um grande iluminador de teatro. Ele não sabe nada de cinema, mas é um dos melhores profissionais de luz para teatro em Portugal. Então trouxemos Rui Monteiro também. Pensei que Crista e o companheiro ficariam no mesmo quarto, até porque não tínhamos muitos quartos disponíveis. Era uma casa só. Ele podia levar seus computadores e alguma luz, para fazer algo totalmente teatral para as noites. Eu e Maureen achamos que era preciso aproveitar o que existe. O namorado da atriz poderia vir com ela, e isso nos ofereceria uma luz teatral que tentamos aproveitar para ter essas duas coisas no cinema, tão distintas: o lado natural, de filmar a natureza durante vários dias no verão, pensando no equilíbrio entre sombra e luz, e as noites de outro mundo, que só poderiam existir no cinema — ter agosto e ter otsoga.

Estas são as duas pontas do espectro do cinema, que vai de um mundo mágico, completamente artificial, à possibilidade de registrar as coisas de maneira quase fotográfica.

A inversão da cronologia se justifica apenas pelo desejo de eliminar as expectativas quanto ao destino dos personagens?

Não, há muitas razões para essa decisão. Uma delas foi que uma das coisas mais proibidas naquele período, para o cinema, era filmar cenas de beijo. Qualquer cena de intimidade entre atores era impossível nos primeiros meses da pandemia. Lembra disso? Então dissemos: vamos fazer um diário, filmando o dia 1, o dia 2, o dia 3, até chegar no último dia. E então, no dia final, filmamos uma cena de beijo. Cada dia corresponde de fato ao dia de filmagem que tivemos. No último dia, o risco seria mais baixo de termos algum risco, porque todos estavam na casa há muito tempo. Se invertêssemos a ordem, esta cena seria o primeiro dia. Esta é uma razão estúpida, mas foi uma das razões.
Também queríamos começar filmando mais a equipe, para depois centrar mais nos três atores. Se você inverter a cronologia, passamos de três pessoas para um grupo cada vez maior. Sentimos que o filme tinha a ver com essa formação de comunidade: começava a aparecer mais um cachorro, mais um técnico, mais uma cozinheira. 
Além disso, quando você se livra da relação de causa e efeito, com a causa surgindo posteriormente, as coisas aparecem por elas próprias. Por exemplo, um trator é um trator. Ele pode ser um lindo trator, e aparecer desta maneira. Só depois você entende que este trator tem uma história, e surgiu numa discussão entre o diretor e a diretora. Mas você já viu o trator em si. As coisas surgem com a beleza delas próprias, antes de surgir qualquer história que as envolva, sem contexto narrativo. Achamos isso muito bonito.

Hoje, os filmes brasileiros enfrentam grande dificuldade de exibição no circuito durante a reabertura das salas. Como tem sido a experiência para o cinema português?

É a mesma história em todos os lugares. Estive na França, num festival em Marselha, com várias pessoas do cinema. Percebi que a situação em Portugal era a mesma dos outros países da Europa, e a mesma do Brasil. É uma situação global. Existe uma recuperação dos filmes de grande público, os blockbusters, mas fica difícil para todo o resto. A competição pelo espaço em salas é grande, porque o escoamento entupiu. Mas também os hábitos dos espectadores se alteraram. Temos muitos sinais negativos. Mantemos a esperança de retomar o ritmo de antes da pandemia, mas está sendo muito difícil.
Para mim, o cinema passa pela sala. Essa foi a minha experiência desde criança. Mesmo fisicamente, é uma experiência totalmente diferente de ver no computador ou em casa. É uma experiência social de compartilhar o filme com desconhecidos que estão curtindo como você, ou odiando como você, ou tendo a reação contrária da sua. Isso é muito bonito; é um cimento social. Dentro do meio cinéfilo, isso é muito importante para nós. Estou muito preocupado com isso, como todo mundo. Eventualmente, vamos ter que repensar nossa experiência com o cinema, e talvez isso já esteja acontecendo. Mas eu vou ter muitas saudades do que vivi quando criança, e como espectador, nas salas de cinema. Se isso mudar radicalmente, vou ter muita pena.

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.