Mostra de Tiradentes 2023: Os curtas que encantam, os longas que perturbam

Por enquanto, os principais destaques da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes têm surgido das sessões de curtas-metragens, com destaque para a forte programação da Mostra Foco. A noite de 25 de janeiro, em particular, apresentou quatro filmes de altíssimo nível, despertando a impressão de que os longas-metragens da Aurora e da Olhos Livres não têm provocado, até o momento, uma empolgação semelhante.

Na Mostra Foco — Série 3, Febre causou um furor no encerramento da sessão. O filme de Márcio Abreu é composto pelos atores do Grupo Galpão, revezando-se para interpretar os dois papéis principais. Nesta “longa jornada noite adentro”, um casal sai pelas ruas para discutir sobre si e sobre o mundo. O texto aposta em repetições de frases que se ressignificam a cada vez que retornam em cena.

Febre, de Márcio Abreu

O curta-metragem produz uma sensação hipnótica, que solicita um espectador ativo, buscando compreender e juntar as peças do quebra-cabeça. No entanto, para além dos mistérios da narrativa kafkiana, resulta num belo experimento cênico liderado pelo ator Paulo André, que maneja diálogos, narração e trabalho corporal com uma desenvoltura ímpar. Além disso, a proposta estética se encaixa muito bem no formato do curta-metragem, explorando sua potencialidade sem esgotá-la.

Menos frenético, mas igualmente forte, é O Último Rock, de Diego de Jesus. No filme, um grupo de adolescentes da periferia discute o perigo que se anuncia no horizonte: a chegada de uma tal pandemia que vai provavelmente exigir o isolamento social. A experiência de reviver a ansiedade pré-Covid-19 soa estranha, por nos situarmos em momento posterior. Além disso, relembra um passado recente e traumático, que não foi esquecido. Entretanto, serve a se associar a outros dilemas da juventude negra: as dificuldades no mercado de trabalho, os preconceitos na universidade, os dilemas em relacionamentos amorosos.

O Último Rock, de Diego de Jesus

As conversas misturam o naturalismo com falas mais posadas, enquanto a estética assume uma postura semelhante: para cada plano com os amigos dançando e tomando cerveja, há agressivos zoom-ins no rosto dos protagonistas, decupando a sequência e criando quadros-dentro-do-quadro. O filme navega pela fronteira instigante entre a ficção político-social e a experiência que pretende nos lembrar, o tempo inteiro, de sua artificialidade. O encerramento com o slam e uma canção remixada de Nina Simone conferem ao resultado uma atmosfera inebriante e melancólica.

A propósito de juventudes, Pés que Sangram apresenta a narrativa de duas jovens voltadas ao tempo passado, evocando lembranças que podem ou não ter ocorrido de fato. A noção de memória afetiva, com seus exageros e incongruências, permeia a jornada das garotas relembrando as viagens e episódios marcantes com os pais. Duas atrizes se revezam lendo as mesmas cartas-diálogos, caso em que a sinceridade da leitura se converte num interessante jogo de cena.

Pés que Sangram, de Roberta Takamatsu

Enquanto isso, a imagem privilegia os espaços abertos, solitários, representados pela figura de um cachorro que contempla o cenário e as meninas, ganhando inclusive seu próprio plano subjetivo na exploração da terra vermelha. A diretora Roberta Takamatsu encerra a jornada de maneira lacônica, bastante aberta, remetendo à estrutura dos contos literários. É interessante que, enquanto os longas-metragens de Tiradentes apostam num estilo experimental agressivo, os curtas-metragens nunca separam o exercício formal do afeto e do humanismo.

Na sessão, Labirinto talvez tenha sido o mais hermético dos curtas-metragens, mas ainda bem conciso e ciente dos recursos que cabem ao formato reduzido. Os diretores Filipe dos Santos Barrocas, Isadora Maria Torres, Léo Bortolin, Lucas Eskinazi e Yuji Kodato reúnem diferentes espaços e temporalidades através da projeção de sombras nas paredes de um cenário distinto.

Labirinto, de Filipe dos Santos Barrocas, Isadora Maria Torres, Léo Bortolin, Lucas Eskinazi e Yuji Kodato

Assim, promovem um encontro simbólico entre diferentes países e grupos sociais. As associações entre o longo letreiro histórico, no início, com as sequências de gado, povos indígenas e paredes de casas pode soar vaga demais, no entanto, os criadores preferem se encerrar numa aventura sugestiva, sem oferecer muitas chaves de leitura. Junto a Pés que Sangram, O Último Rock e Febre, compôs um conjunto coerente, de diálogos férteis entre os filmes, graças a uma boa escolha da curadoria.

Em contrapartida, a escolha dos organizadores de situar o longa-metragem Vermelho Bruto às 22h foi desfavorável ao filme. Com 3h25 de duração, o projeto experimental da Mostra Aurora terminou por volta de 1h30 da manhã, quando poucas pessoas permaneciam na sala de cinema. A obra exigente e hermética de Amanda Devulsky precisaria de um espaço mais propício para chamar o público e estabelecer diálogo. Infelizmente, diversos espectadores da Cine-Tenda foram vencidos pelo cansaço.

No centro do filme se encontram quatro mulheres que se tornaram mães na adolescência, durante o processo de redemocratização do Brasil. Em 2018, face à eleição de Jair Bolsonaro, refletem sobre os perigos à democracia, e sobre a posição das mulheres em sociedades conservadoras. Apesar da premissa instigante, os recursos experimentais impedem uma reflexão aprofundada de ordem sociológica ou política.

As imagens abstratas, dissociadas do som, e a ausência do rosto dessas mulheres tornam a experiência bastante árida ao espectador. Além disso, é difícil justificar a duração tão extensa — uma montagem mais enxuta favoreceria o depoimento dessas mulheres e a comunicação com o espectador. O resultado desperta a sensação de ser o primeiro corte de um filme que necessitaria de maior trabalho na mesa de edição. Leia a crítica.

Cambaúba, de Cris Ventura

Se Vermelho Bruto faz questão de complicar o diálogo, Cambaúba tenta simplificar até demais a História do Brasil. No longa-metragem da Mostra Olhos Livres, a diretora Cris Ventura cria uma mistura de drama, documentário e fantasia para evocar o genocídio indígena e o histórico dos bandeirantes na rua-título. Na condição de personagem fictícia, ela entrevista moradores e arquivistas, enquanto recria delírios fantásticos onde as almas de exploradores e vítimas se reencontram. A experiência segue plácida, simples e um tanto didática. Leia a crítica.

A Mostra Aurora ganha força na quinta-feira, 26 de janeiro, com a exibição de dois longas-metragens inéditos: Cervejas no Escuro e Peixe Abissal. Espera-se que, depois de duas sessões pesadas com Xamã Punk e Vermelho Bruto, a seção ganhe novos respiros. Além disso, na Mostra Olhos Livres, os espectadores descobrem O Canto das Amapolas.

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