Querido diretor: você não é o seu filme

Aconteceu de novo. Abri a caixa de mensagens das redes sociais e descobri a longa carta de um diretor enfurecido com minha crítica a respeito do filme dele. Afirmou que meu texto era uma piada, uma análise política ao invés de cinematográfica. (É possível separá-las?). Disse que eu precisaria conhecer sua vida inteira, tudo o que havia feito de bom até então, incluindo suas participações em manifestações e seus posicionamentos pessoais, para compreender o resultado em tela.

Respondi, alegando que nenhum crítico de cinema deve investigar a vida privada do realizador, porque as imagens falam por si próprias. Conhecer a filmografia do artista seria uma ferramenta útil, mas não indispensável. Afinal, nosso objeto de estudo é o filme, a série, ou em última instância, o próprio cinema enquanto arte e manifestação cultural. Não cabe atribuir ao crítico a função de biógrafo: avaliamos obras, ao invés de pessoas.

Ratatouille (2007)

“São a mesma coisa”, alegou a tréplica. “É impossível separar o homem da obra”. Este argumento, que se consolidou com o movimento MeToo, visava responsabilizar homens de poder pelos abusos cometidos contra mulheres na indústria do audiovisual. O caso, desta vez, era bem diferente: na impossibilidade de separar criador e criatura, eu me tornaria responsável por investigar os tiros de borracha levados pelo indivíduo em protestos de algumas décadas atrás — nada disso relacionado às suas obras, até onde se saiba.

Outros argumentos foram inseridos na longa troca de mensagens, até uma das duas partes se cansar, decidir que a sequência não portaria frutos, e abandonar a conversa. Entretanto, ficou na minha cabeça a ideia de que, em virtude da conexão óbvia entre cineastas e seus filmes, seria impossível separá-los. Isso significa que amar uma obra equivaleria a amar o diretor, e detestar um resultado, a atacá-lo diretamente. A relação não poderia ser mais pessoal do que isso.

Amar uma obra equivaleria a amar o diretor, e detestar um resultado, a atacá-lo diretamente.

As raízes deste pensamento são claras, sobretudo no que diz respeito à política dos autores. Ainda se estima que o diretor (geralmente um homem, branco, heterossexual, de certa idade) empresta seu talento automaticamente ao projeto, que teria portanto a sua cara. A criação artística se converte numa procriação de traços genéticos: o filho sairia com a cara do pai. Ora, estas pessoas se esquecem de que os filmes, mais do que os filhos, envolvem dezenas, às vezes centenas de pessoas, na inseminação. Roteiristas, produtores, editores, diretores de fotografia, diretores de arte, atores e tantos outros profissionais influenciam no trabalho coletivo e plural.

No entanto, ainda persiste o ideal de potência e soberania do diretor em relação à sua criação. Criticar o filme equivaleria a criticar o filho de alguém: os próprios pais podem ficar enfurecidos com os erros de seus pimpolhos, mas o resto do mundo, não. Apontar falhas na obra seria sinônimo de deslegitimar a pessoa por trás de um longo processo. Neste caso, a crítica não lançava qualquer ataque ao cineasta. Não duvidava de seu talento ou competência. Não apontava falhas do passado, não questionava o direito de filmar. Apenas alegava que este filme, em minha opinião, era questionável por uma série de motivos elencados.

O mecanismo de defesa é comum: criticamos os filmes, e eles, em resposta, criticam o crítico. Os ataques que recebi foram pessoais, duvidando do meu conhecimento, da minha boa vontade, do meu caráter. O texto me chocou, como sempre choca nestes casos, mas despertou uma impressão curiosa: o realizador me atacava enquanto pessoa, mas não combatia nenhum dos argumentos da crítica. Pedi duas vezes para voltarmos ao filme, para que ele explicasse porque os pontos levantados não procediam. Não tive resposta. 

Talvez a raiva tenha surgido do fato que, no fundo, ele concordasse com os elementos citados. É terrível perceber algo ruim em nosso trabalho. Terrível, mas necessário. Já recebi várias críticas a respeito de meus textos e vídeos, e isso sempre mexeu comigo. Incorporei muitas delas, que me ajudaram a melhorar a escrita, e desprezei tantas outras, que me pareciam impertinentes. Julgar um filme significa colocar um pouco de si, tornar públicos os nossos sentimentos a respeito de uma obra. Fazer crítica, no estado atual das coisas, constitui um ato de coragem. (Fazer filmes, também).

Diretores passam anos desenvolvendo seus projetos. Em duas horas, o crítico assiste ao filme, e pouco depois, transmite sua percepção num texto. Isso não parece justo a muitos artistas.

Para muitos, esta relação soa assimétrica. Diretores passam anos desenvolvendo seus projetos, esforçando-se arduamente para reunir o financiamento, uma boa equipe; para filmar, finalizar, distribuir, exibir. Então, em duas horas, o crítico assiste ao filme, e pouco depois, transmite sua percepção num texto. Isso não parece justo a muitos artistas. No entanto, trata-se da natureza de cada processo: os críticos não são responsáveis pelo fato de o cinema ser uma arte cara e exaustiva de produzir, assim como cineastas não podem ser responsabilizados pelo tempo de elaboração de uma crítica. Deveríamos escrever o texto ao longo de quatro, cinco anos, para chegar a uma equivalência? Impossível.

Atletas de alto nível se apresentam em questão de segundos: dez segundos, às vezes, no caso do atletismo de 100 metros rasos. Isso não significa que o esforço do atleta se resuma àquela apresentação: ele certamente dedica muitas horas de cada dia, ao longo de anos e décadas, preparando-se àquela performance. Guardadas as proporções, a crítica revela nos textos e vídeos um conhecimento desenvolvido e amadurecido diariamente no decorrer de sua profissão. Há Usain Bolts na crítica, e há também críticos muito fracos, como em qualquer ramo. Entretanto, um texto em particular constitui apenas a ponta do iceberg.

A comunicação inteira soa truncada. Afinal, nenhum diretor faz filmes para os críticos. Seu alvo é o público, o espectador que gostará ou não. O crítico entra como penetra nesta festa — efetuando, em certa medida, um romance não-autorizado. Seguindo o mesmo raciocínio, nenhum crítico escreve textos para os diretores — ou, pelo menos, não deveria. Escreve-se para leitores, sejam eles espectadores dos filmes em questão ou não. Atuamos com objetivos diferentes, a alvos diferentes. Nossos esforços estão intimamente conectados, ainda que apontem a direções opostas (talvez paralelas, no melhor dos casos).

Por isso, a ideia de que conhecer um filme implicaria na necessidade de conhecer a vida pessoal do diretor me parece insana — um argumento frágil, na ausência de outros mais fortes que pudessem de fato contestar os elementos da crítica em questão. Diretores criam filmes (junto a muitas outras pessoas), mas eles não são seus filmes. Na época da arte pop, discutia-se a coincidência entre artista e obra: um Warhol ou um Duchamps teriam valor por si próprios, importando pouco o que estas artistas viessem a criar. 

Outro realizador, revoltado com um artigo de dois meses atrás, clamou que eu só escrevesse a respeito de obras que gostasse, porque é muito difícil fazer filmes no Brasil.

Algo semelhante ocorre na adoração cega aos autores, em pleno século XXI: amar um Fellini, ou detestar um Östlund, ultrapassa a etapa dos próprios filmes oferecidos por eles, que podem ser melhores, piores, diferentes, com o passar dos anos. O autor é capaz evoluir, ousar, se arriscar, se transformar, certo? Podemos criticar um filme sem possuir nenhum julgamento afetivo prévio pelo diretor — na maioria dos casos, sequer os conhecemos pessoalmente. É claro que existem críticos com notável prazer em atacar artistas e se promover a partir destas polêmicas propensas ao mundo das redes sociais, mas reconheçamos as exceções que somente confirmam a regra. Há um corpo considerável de críticos e críticas, tanto jovens quanto experientes, que desempenham seu ofício muitíssimo bem.

Ler uma crítica à sua obra é dolorido. Compreendo. Ao longo dos anos, fui tomando precauções para evitar o deboche, a provocação gratuita e outras ferramentas de autoridade que talvez estivessem mais presentes no começo do meu percurso. Quero pensar que melhorei, e se possível, seguirei aprimorando este trabalho. Em contrapartida, isso não pode implicar numa indulgência: outro realizador, revoltado com um artigo de dois meses atrás, clamou que eu só escrevesse a respeito de obras que gostasse, porque é muito difícil fazer filmes no Brasil. 

Essa dificuldade é inegável. Em contrapartida, duvido que minha crítica possua uma influência tão decisiva assim — nenhum estudo sociológico comprova o impacto direto da crítica nas bilheterias, nem positiva, nem negativamente. Afinal, é impossível separar este fator de outros que levam as pessoas às salas: a publicidade, o boca a boca, a disponibilidade em salas, etc. Uma crítica desprovida de senso crítico se converte em marketing. Os piores críticos são aqueles que, para agradarem a todas as distribuidoras, convertem-se em outdoors ambulantes de toda e qualquer produção.

Em paralelo, é tão doloroso quanto necessário ser questionado pela qualidade dos textos e vídeos, pelo valor dos argumentos. Não é fácil reconhecer nossas falhas, lacunas e inconsistências, mas apenas através destes apontamentos, podemos melhorá-las. Esta é a regra do jogo: a crítica serve para colocar uma obra em debate, abrindo-a e expondo seu mecanismo, e precisa estar disposta a ser dissecada da mesma maneira. A crítica nunca poderá reivindicar o monopólio do discurso, nem querer ditar a palavra final a respeito de uma obra. 

Uma crítica desprovida de senso crítico se converte em marketing. Os piores críticos são aqueles que, para agradarem a todas as distribuidoras, convertem-se em outdoors ambulantes.

Quem critica precisa estar disposto a ser criticado. E isso vale para artistas, como para críticos. Ambos emitimos discursos, opiniões, através de obras de arte, ou a partir delas. O crítico tampouco é sua crítica, apesar de estar intimamente ligado a ela. Ironicamente, trabalhamos por um mesmo ideal, apesar destas brigas, desabafos e provocações em redes sociais. É possível, e necessário, discutir os frutos de uma árvore sem terminar por derrubá-la. Até porque a árvore é tão benéfica a quem planta quanto a quem colhe.

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