Another End (2024)

O corpo errado da mulher certa

título original (ano)
Another End (2024)
país
Itália
gênero
Drama, Romance, Ficção Científica
duração
129 minutos
direção
Piero Messina
elenco
Gael García Bernal, Renate Reinsve, Bérénice Bejo, Olivia Williams, Pal Aron
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Imagine que você possa trazer de volta aquela pessoa querida que já morreu. Em Another End, uma empresa de tecnologia consegue este feito, ainda que de maneira “simulada”. A consciência do falecido é transposta a um novo corpo, que passa a incorporar esta memória e agir exatamente como o marido, namorado ou filho partido. A experiência dura apenas algumas “sessões”, com o intuito terapêutico de dar aos familiares em luto a possibilidade de acertarem as contas e se despedirem devidamente.

Assim, a morte ainda ocorre, porém, de maneira retardada, com chances de uma “segunda tomada” caso o adeus tenha desagradado o familiar. O roteiro dedica certo tempo a explicar algumas regras, estabelecidas de modo aparentemente aleatório: cada pessoa tem direito a três ou quatro sessões; os corpos não podem ser escolhidos; e estes hóspedes preenchem uma longa ficha de consentimento antes de participarem do experimento. Eles aceitam formalmente, entre outros, que os clientes possam fazer sexo consigo. Nenhum hóspede se lembrará dos fatos ocorridos.

Embora os elementos centrais estejam explicitados, o diretor Piero Messina (que co-assina o roteiro com mais três pessoas) nunca mergulha a fundo nos limites sociais e éticos do procedimento. Ele custa caro? Apenas os ricos podem fazê-lo? Quanto recebem os “hóspedes” por tamanha situação de risco? Seriam considerados trabalhadores explorados pelo sistema em função desta prática? Ninguém protesta contra o empreendimento? Os testes sempre deram certo? Nunca apresentaram falhas, efeitos colaterais secundários? 

O longa-metragem sustenta um som gravíssimo. Ele não percebe, ou não quer perceber, que o conceito caminha na linha tênue entre o comovente e o ridículo.

As perguntas vão além: o que fazer caso o cliente vicie o hóspede em alguma droga durante as sessões, caso o agrida ou mate? Ninguém protesta contra estes abusos, ou utiliza os poderes em seu favor? Nenhuma prática clandestina se apropria desta tecnologia? Teria sido importante conhecer o contexto social em que tal tecnologia se tornou legalizada. Estamos falando de uma sociedade autoritária, democrática, punitiva? No presente, num futuro próximo? Cineastas como David Cronenberg, Alex Garland ou Yorgos Lanthimos se deliciariam com as leituras políticas de tal premissa.

Ora, Messina não se importa muito com a ficção científica, que constitui, em seu projeto, mero ponto de partida. Não espere nenhuma explicação biológica para tais funcionamentos: nesta narrativa, determinou-se que a ressurreição dos mortos é possível; ponto final. O cineasta italiano explora a ideia pela perspectiva do melodrama especulativo: você seria capaz de reconhecer num corpo alheio as atitudes e memórias da pessoa amada? Acredita se apaixonar pela alma (ou identidade, ou essência) de alguém, ou por sua imagem e aparência?

No centro da narrativa, encontra-se Sal (Gael García Bernal), homem em luto pela morte da esposa. Ele se sente responsável pelo acidente de carro, pois estava dirigindo quando colidiram. Assim, passa os dias depressivo, cogitando o suicídio, até ser progressivamente tentado pela ideia do resgate temporário de Zoe — o roteiro se mostra bastante didático nos exemplos bem-sucedidos ao redor dele. Apesar de recusar inicialmente a mulher de traços desconhecidos (Renata Reinsve), acaba se apaixonando por ela.

Another End se encaixa nas trajetórias de amores impossíveis, de teor levemente espiritual, ou transcendental, graças à morte intrínseca a esta união. Sal continua a ver sua hóspede, mesmo depois das sessões permitidas, porque não aceita se separar dela. O fato de amar alguém que não se pode ter, por incompatibilidades do destino, proporcionaria outra metáfora social ou política evitada por Messina. O autor dialoga única e exclusivamente com os sentimentos dele, dela e da irmã de Sal (Bérénice Bejo), que executa o protocolo médico da empresa de tecnologia. 

Evita-se qualquer quiproquó externo: ninguém reconhecerá Zoe-Ava pelas ruas enquanto estiver habitada pelas memórias da falecida; nem Sal vem a caminhar com ela em público, cruzando com conhecidos que veriam o amigo de mãos dadas com a nova companheira. Trata-se somente dos dois, em chave dramática tradicional. Isso inclui cenas de choro, muita música intrusiva e triste (um jazz vaporoso), close-ups no olhar esperançoso dele e dela, noites passadas a ver um filme, beber vinho e fazer sexo. A superação da morte adquire uma dimensão doméstica.

O longa-metragem sustenta um som gravíssimo, tão sepulcral que às vezes levou os espectadores na sala de cinema aos risos. Isso porque os criadores não percebem, ou não querem perceber, que o conceito caminha na linha tênue entre o comovente e o ridículo. Diversos autores teriam incluído momentos de leveza para equilibrar o tom, ou instantes de autocrítica, quando os personagens perceberiam o absurdo de sua situação e ririam de si mesmos. Ora, isso inexiste aqui: apesar de sua competência e comprometimento, o filme se conduz com a seriedade típica dos filmes muito ruins, mas incapaz de percebê-lo.

Esta impressão se intensifica nos trinta minutos finais, tão arrastados quanto repletos de reviravoltas e surpresas ao espectador. Se a condução não era particularmente sutil até então, ela se entrega ao teor folhetinesco, incorporando resoluções de uma ingenuidade que interessa por sua raridade em produções “adultas”. Há de se admirar um projeto tão corajoso (ou inconsequente) a ponto de incorporar tamanhas liberdades em relação ao bom senso ou à verossimilhança. Pelo menos, Messina não efetua concessões ao gosto médio no intuito de agradar a maior número de espectadores. Ele acredita em sua iniciativa, e vai até o fim.

Em conclusão, cabe pensar o número crescente de filmes no festival de Berlim que lidam com certa teatralidade no procedimento. Isso envolve personagens se passando por outros, interpretando terceiros, em dispositivos assumidamente artificiais. Pessoas sem deficiência encarnam deficientes em A Different Man; um pesquisador assume a identidade falsa de repórter em The Editorial Office. Trata-se de histórias curiosas quando vistas em conjuntos, pois obcecadas com a perspectiva de que as cópias, de baixa qualidade, possam roubar o lugar do original em um mundo onde não se consegue mais diferenciar um do outro. 

Another End (2024)
5
Nota 5/10

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