Bogancloch (2024)

Arte rarefeita

título original (ano)
Bogancloch (2024)
país
Reino Unido, Alemanha, Islândia
linguagem
Drama, Documentário, Experimental
duração
86 minutos
direção
Ben Rivers
elenco
Jake Williams
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Neste curioso projeto, o diretor Ben Rivers não toma decisões pela metade. Nenhum tipo de sutileza, de subentendido, de nuance parece lhe interessar. A apresentação de seu personagem principal beira a abstração: durante um plano escuríssimo, distingue-se com dificuldade o formato de um carro, além de alguns pontos luminosos que, mais tarde, indicação a carroceria. Desconhecemos o homem idoso sem nome, que demora bastante a ter seu rosto revelado. Antes disso, escutamos sons, ruídos esparsos. Mesmo o gato aparece antes de seu tutor.

Talvez nem seja justo afirmar que o sujeito solitário ocupe a posição de protagonista. Afinal, o verdadeiro foco do cineasta não se encontra no material humano, mas na possibilidade de explorar a película, a luz, as cores, a duração dos planos. Bogancloch (local onde vive o homem, embora seja necessário ler a sinopse para descobrir tal informação) alterna entre cenas em preto e branco contrastadíssimo, e fotografias still de um colorido profundo. 

A captação majoritária, em preto e branco, é encoberta por riscos, ruídos, flashes de imagem “queimada”, bordas desiguais. Já as fotos recebem uma intervenção na forma de manchas que borram a quase totalidade das paisagens retratadas. Este é um filme que poderia transmitir seu conteúdo de maneira muito clara e linear, se assim o desejasse. No entanto, o prazer do autor se encontra precisamente em dificultar o percurso, em fazer com que o espectador se perca nos significados e construções, buscando, de maneira ativa, decifrar aquilo que os feixes representam.

É difícil determinar o que Ben Rivers teria a dizer a respeito de seu personagem, de sua solidão, de seu modo de vida. Para alguém que admira tanto as paisagens, surpreende a compulsão pelas intervenções, filtros e ornamentos do real.

Seria uma captação em película antiga e vencida, ou um efeito semelhante, produzido em suporte digital? Por que Ben Rivers apostaria num estilo capaz de chamar tamanha atenção a si próprio? Caso o consideremos enquanto cinema experimental, o que exatamente ele estaria experimentando a partir desta viagem sensorial? O que teria motivado os criadores a acompanharem a rotina do sujeito idoso que descansa de um lado ao outro, em silêncio? As perguntas restam sem resposta — de maneira totalmente voluntária pelo cineasta, sem dúvida.

Em oposição às imagens nebulosas e herméticas, o som se mostra claro até demais. Conforme o gato devora os restos de uma ave depenada, a captação de ruídos parece construída a posteriori para tal cena. Aliás, a obra demonstra tamanho nível de intervenção e controle no meio (vide os planos fixos do galpão, e a ascensão interminável do drone na conclusão) que nem mesmo poderia ser chamada, com certeza, de documentário. Nem mesmo ao nível ontológico, tal definição se sustentaria: afinal, o que este filme documentaria, para além de comprovar que algo existiu, um dia, em frente à câmera (o ça a été de Barthes)? 

Bogancloch soa como uma brincadeira de suposição de significados e atribuição de sentidos. As tentativas do público mais atento resultam tão pertinentes quanto enxergar formas de animais em nuvens. Estas metáforas vagas dispensam a certeza da afirmativa, ou a noção de finalidade, posto que o autor evita chaves de leitura que condicionem um caminho mais restrito de interpretação. A maioria do público deve apenas desistir da proposta longuíssima, inerte, de planos intermináveis, e desprovida de ações. A priori, pode-se falar numa sucessão de atividades (tomar banho, cantar, descansar na relva), porém, nenhum conflito.

Na sessão de imprensa, algumas pessoas abandonaram a obra de duração enxuta. Falou-se, nos bastidores, no “filme mais chato da Mostra” — algo que dificilmente incomodaria o criador, que provavelmente visa esta precisa irritação e perturbação dos sentidos. Ele oferece a proposta de experiência do tempo que passa, baseada na contemplação do cotidiano de uma pessoa mantendo contato quase nulo com a sociedade (exceção feita às aulas, aparentemente informais, de astronomia às crianças). Os diálogos são raríssimos, e restritos a poucos minutos de narrativa. 

Logo, o filme parece existir em oposição aos pressupostos de um cinema clássico-narrativo. Ele exemplifica a caricatura do que se convencionou chamar de “filme de arte”: um projeto árido, de difícil imersão e comunicação, a respeito de personagens e cenários exóticos, em preto e branco, onde “nada acontece”. É difícil determinar o que Ben Rivers teria a dizer a respeito de seu personagem, de sua solidão, de seu modo de vida. Para alguém que admira tanto as paisagens, surpreende a compulsão pelas intervenções, filtros e ornamentos do real.

Pelo menos, Bogancloch permanece coeso e coerente com seu princípio, sem facilitar a iniciativa nem abrir qualquer concessão ao gosto médio. Acredita-se com rara convicção na eficiência de tal método, evitando explicações, contextualizações, senso de finalidade ou mesmo de narrativa. O projeto não existe para agradar o espectador, nem para informá-lo do que quer que seja. Busca-se uma forma de arte tão intervencionista quanto a pintura, no sentido de partir de um quadro em branco e depois pintar, extravasar o contraste, inserir ranhuras, estender os planos. 

Os personagens e cenários convertem-se em modelos, posando para o pintor vaidoso, e ansioso em demonstrar tudo o que sabe fazer com o pincel. No final, nem o senhor idoso, nem a linguagem são os reais protagonistas da iniciativa, mas o próprio diretor, que constitui princípio e finalidade da obra. Ele sabe o que busca, e o alcança. Cada composição ou interferência em pós-produção aprofunda a impressão de uma vaidade autoral. Resta saber se tais pretensões estetizantes estabelecem alguma forma de comunicação com o público, para além da satisfação do criador consigo próprio.

Bogancloch (2024)
5
Nota 5/10

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