Arca de Noé (2024)

A política para crianças

título original (ano)
Arca de Noé (2024)
país
Brasil, Índia
linguagem
Animação
duração
101 minutos
direção
Sérgio Machado, Alois Di Leo
vozes originais
Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Alice Braga, Lázaro Ramos, Gregorio Duvivier, Julio Andrade, Bruno Gagliasso, Giovanna Ewbank, Eduardo Sterblitch, Ingrid Guimarães, Heloisa Périssé
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Um grupo desfavorecido luta para ser contemplado pelos planos do novo governo antidemocrático. Sofrendo com a fome e a miséria, estes indivíduos marginalizados precisam combater a ganância do líder autoritário, que se une a outros magnatas no intuito de concentrar poder e recursos. Este poderia ser o ponto de partida de um drama político, exceto pelo fato que os personagens são ratos, leões, elefantes e baratas, construídos com os traços lúdicos do cinema de animação.

Arca de Noé certamente não constitui o único filme para crianças a lidar com questões de organização social. Os maiores e melhores filmes animados também visam despertar um senso crítico nos pequenos, mediante ferramentas da fantasia — vide Wall-E, Zootopia e O Gigante de Ferro, para citar alguns gigantes norte-americanos. A novidade está na origem brasileira do projeto, além da tentativa de inserir tais discussões tanto na lenda bíblica quanto nas canções baseadas em poemas de Vinícius de Moraes.

Por isso, a narrativa abre e fecha com A Casa, canção simples (e politicamente instigante), entoada por algumas das maiores vozes do cinema nacional. O elenco traz atores confirmados como Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Lázaro Ramos, Bruno Gagliasso, Alice Braga, Ingrid Guimarães, Heloísa Perissé, Eduardo Sterblitch, Seu Jorge, Gregório Duvivier, Julio Andrade e Luis Miranda, além dos cantores Chico César, Céu, Adriana Calcanhotto e BaianaSystem. Devido às proporções da iniciativa e à qualidade da produção, o longa-metragem impressiona de imediato.

Arca de Noé representa a tentativa, tão ambiciosa quanto utópica, de promover uma obra agradável à direita religiosa e à esquerda progressista.

Destaca-se igualmente a imersão numa cultura tipicamente brasileira. Chega a ser um alívio nos deparar com diálogos pensados para referências nacionais, não adaptados nem traduzidos de um referencial estadunidense. “Sem mimimi”, reclama um; “Dá um like”, pede outro; venha para a minha “área VIP”, convida o terceiro. “Ninguém solta a pata de ninguém”, gritam os bichos, durante o colapso da arca. “Isso é puro ratismo. Você não tem lugar de furo”, questionam os tripulantes. É evidente que o roteiro foi pensado para crianças e adultos, adequando-se às pautas sociais e mergulhando com destreza na atual polarização política.

Isso implica na tentativa, tão ambiciosa quanto utópica, de promover uma obra agradável à direita religiosa e à esquerda progressista. Os personagens acatam de imediato as ordens de Deus, que solicita a construção da imensa arca capaz de transportar os animais, “um de cada sexo”. Este Deus é divertido, fala em gírias e critica os áudios de cinco minutos no WhatsApp — um dos motivos alegados para inundar o planeta. No interior da embarcação, os pedidos de atenção dirigem-se a “amigos, amigas e amigues”, enquanto alguns animais representam travestis. A personagem humana principal questiona Noé, seu pai, a respeito dos animais LGBTQIA+, escutando como resposta (educadamente) que se cale e termine a refeição.

A tentativa obtém sucesso, até certo ponto. Parte de uma fábula essencialmente binária (a formação de pares formados exclusivamente por um homem e uma mulher), sem tentar subverter esta fórmula (que tal dois ratinhos homens, ou animais não-binários?). Ela diminui o caráter doutrinário da fábula bíblica, o que acaba levando à decisão um tanto arbitrária de matar diversas pessoas e animais via dilúvio — Deus soa como uma figura mimada e impulsiva, que jamais justifica suas ordens a contento. Diante da agonia dos bichos se afogando e racionando comida, talvez seja a entidade divina o verdadeiro vilão da história (interpretação esta obviamente indesejada pelos autores).

O roteiro possui dificuldade em orquestrar, em paralelo, tantos personagens e ações. A proposta do concurso de música nunca realmente surte efeito (a competição será praticamente abortada a seguir); a subtrama dos amigos buscando o raminho é esquecida durante tempo excessivo pela montagem; o problema gravíssimo da falta de comida e da precariedade da embarcação será dispensado mais tarde. Os criadores se mostram excelentes criadores de conflitos, ainda que não os resolvam de fato, preferindo abandonar a maioria de seus dilemas.

Em paralelo, é interessante que, numa fábula musical repleta de animais artistas (encarnados por nossos maiores atores e cantores), as canções possuem papel acessório, seja mercantil (o dilema da venda das composições autorais), seja de enganação ou estratégia política (a dublagem inverossímil, nos moldes de Cantando na Chuva). A música não acalma as feras — o ideal conciliador e civilizatório da arte —, nem promove uma meritocracia devido ao talento excepcional — como se encontra no norte-americano Sing. Canta-se por distração, para ganhar tempo até libertar uma ratinha presa, ou para distrair bichos aprisionados. 

No final, apesar de seus excessos e falhas (nas quais se inclui a segunda metade particularmente arrastada), Arca de Noé possui um saldo positivo. O cinema de animação brasileiro se encontra em momento grandioso, com excelentes longas-metragens independentes (Placa-Mãe) e também tentativas de superproduções como esta, concebida em parceria com a Índia. A qualidade da técnica da animação, da luz, da direção de arte e, sobretudo, do trabalho de vozes é impressionante. Oferece-se ao público um produto e uma obra de arte capaz de rivalizar, sem falsa modéstia, com os conhecidos referenciais dos Estados Unidos.

Além disso, a animação representa uma tentativa importantíssima de estabelecer um filme do meio, capaz de dialogar com crítica e público, ou seja, de promover reflexão crítica enquanto diverte com acenos à cultura pop e à música brasileira. Os diretores Sérgio Machado e Alois di Leo não ignoram nenhuma parcela da sociedade, compreendendo a necessidade de abraçar tanto os grupos modernos quanto os conservadores, tanto a cultura popular quanto a erudita, tanto a Bíblia quanto a comunidade LGBQTIA+. Ele não consegue necessariamente contemplar estes grupos em profundidade, porém atesta para uma nova concepção de blockbuster pensado especificamente para o caso brasileiro — num horizonte de conciliação política e ideológica. O resultado possui valor notável enquanto iniciativa e sintoma de sua época.

Arca de Noé (2024)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.