Cena inicial: Lucas (Vinicius Teixeira) está cansado do namorado Martin (Léo Bahia). Afasta-o, pede um tempo. Cena seguinte: Lucas viaja a Canoa Quebrada e, diante da primeira desconhecida, declara que não tem sorte do amor, porém sonha em encontrar alguém, o quanto antes. Terceira cena: o rapaz encontrado por Lucas é o musculoso guia turístico Felipe (Gabriel Fuentes), antiga paixão do herói. O amor retorna instantaneamente. Eles decidem passar aquele dia juntos. E o dia seguinte, também.
A partir deste momento, Lucas possui um conflito único: sua paixão repentina e profunda pelo “melhor amigo”, de quem não parecia particularmente próximo no passado. Diz-se que o protagonista trabalha como arquiteto, embora nada indique esta profissão. Ele não possui pendências em casa, ligações a fazer, satisfações a dar aos amigos, cachorros ou parentes de quem cuidar. Mesmo no Ceará, nenhum plano ocupa a mente de viajante para além de Felipe: será que ele me ama? Vai continuar me amando? Vai preferir a mulher do bar, o casal do quarto ao lado? Vai embora da cidade sem me ver? Vai atender clientes como garoto de programa? Mas e o meu sentimento de posse, meu desejo de exclusividade?
O Melhor Amigo procura um equilíbrio entre estilos e ambições quase antagônicos. Por um lado, busca ser doce, acessível, leve, como os filmes da Sessão da Tarde que sempre encantaram ao diretor Allan Deberton — e não há nada de errado nisso, claro. Por outro lado, no entanto, deseja representar o ímpeto sexual dos homens gays, a pegação nos aplicativos, a vida nas boates, as gírias das drag queens. A comédia visa um registro tão escapista quanto realista, numa combinação que desperta certos incômodos.
O Melhor Amigo briga constantemente entre estilos e tons. Às vezes, investe num teor solene, grave; às vezes, procura um fervor kitsch que falta à direção.
No caso, o projeto descreve seus personagens enquanto seres infantilizados com tesão. Aposta-se na ideia de que o ser apaixonado se aproxima da criança birrenta, que precisa satisfazer os seus desejos de imediato. O rapaz demonstra interesse nulo pelo mar, pela comida, pela música, pela cultura local. Nem mesmo o telefone tocando nos bares — elemento decorrente do curta-metragem original — surte efeito determinante à trama. Ao longo de 96 minutos, ocorrem pouquíssimos conflitos neste roteiro, interessado apenas no ponto de vista do sujeito ensimesmado, desprovido de dilemas para além do amor romântico.
Todos os coadjuvantes no caminho de Lucas servem para ajudá-lo ou confrontá-lo, enquanto ele manifesta preocupação nula com as pessoas ao redor. Há figuras não-binárias, drag queens barbadas, rapazes gordos, contanto que sirvam para a réplica ao jovem. Nenhuma destas figuras se desenvolve minimamente, ou ainda adquire uma trajetória própria. O turista encontra meia-dúzia de fadas madrinhas no percurso, que o acolhem em seu apartamento, confortam-no após a crise melancólica na balada, ou o recebem para uma noite de sexo quando assim o deseja. O mundo existe para Lucas.
As cenas musicais poderiam constituir o instante onde as pulsões se extravasam, posto que o aspecto lúdico serve à perfeição para a fuga do real. No entanto, as canções de O Melhor Amigo jamais fazem a trama avançar, nem revelam traços de personalidade capazes de retirar os personagens dos arquétipos comuns, e um tanto preconceituosos, da comédia gay (o “par romântico” com porte de gogo boy; o jovem gordo visto como patético em sua humilhação amorosa; os vizinhos efeminados e desprovidos de amor-próprio, servindo unicamente como alívios cômicos).
Além disso, o canto e a dança se enfraquecem devido a algumas escolhas de direção. As músicas são intensamente trabalhadas em estúdio, limpíssimas, mixadas e ornadas a ponto de nunca soarem provenientes da boca dos personagens — a falta de sincronia em alguns lip syncs tampouco ajuda. (Apenas em Os Descendentes se via um trabalho musical de tamanha artificialidade, certamente voluntária. Ora, a saga da Disney abordava pequenos vilões num mundo mágico, caso em que a extravagância se justificava).
Já as opções de direção e direção de fotografia resultam modestas para o efeito desejado. A dança no bar, ao lado dos telefones coloridos, e principalmente o número nas ruas da cidade, liderado por Lucas, sofrem com uma frontalidade bastante simples do olhar: a câmera se posiciona em frente aos personagens, em planos de conjunto, evitando dançar com eles, explorar diferentes ângulos, profundidades, pontos de vista. No bar, assistimos aos shows das drags e da Gretchen como se estivéssemos em uma mesa à frente do palco. O dispositivo dificulta a imersão.
Isso ocorre porque O Melhor Amigo briga constantemente entre estilos e tons. Às vezes, investe num teor solene, grave (a canção de Lucas sob fundo preto); às vezes, procura um fervor kitsch que falta à direção (a dança energética do protagonista na rua diante da câmera meramente contemplativa). A direção de arte insere cores e elementos queer, porém nenhuma possibilidade de subversão (narrativa, estética, de ponto de vista) corrobora com a proposta. Atores, direção de fotografia, direção de arte e montagem parecem dançar números diferentes, cada qual em seu próprio filme.
Resta uma obra extremamente pudica sobre o sexo: os homens pensam em transar o tempo inteiro, mas dão um beijo — corta a cena — e acordam no dia seguinte, com o lençol cuidadosamente cobrindo a nudez. Trata-se de um musical sem coragem de explorar a extravagância cafona, colorida, aguardada com a presença de Gretchen e outros ícones musicais. Deberton hesita entre ser simples e grandioso. Oscila entre algo assumidamente cafona a partir de ícones queer (como fazem, por exemplo, Henrique Arruda, Rafaelly de La Conga Rosa, ou biarritzzz) e um teor palatável, comportado, acessível à família tradicional brasileira.
Isso não significa que o público não tenha se divertido, pelo contrário. Na sessão do Festival MixBrasil, a plateia ria, cantava as canções junto aos personagens, e se mostrou visivelmente satisfeita com a experiência. As primeiras reações na Internet foram quase unanimemente positivas, apontando a um filme gostoso, divertido — uma boa Sessão da Tarde, conforme buscava seu autor. O projeto também merece atenção pela investida num musical gay, com números de canto e dança, em moldes raríssimos no cinema brasileiro atual. É preciso coragem dos produtores, atores, e de toda a equipe para abraçar um gênero de pouco reconhecimento e prestígio atualmente.
No entanto, ainda se espera de um diretor munido de tantas referências e experiências, mirando um horizonte queer, que construa personagens menos inocentes e ingênuos, especialmente quando deseja tornar o sexo um elemento central na trama. Talvez a identificação do espectador ocorra por aspiração, ao invés de espelhamento: poucos terão a construção unicamente sexualizada de Felipe, ou a disponibilidade de tempo e afetos de Lucas. O público médio deve se sentir mais próximos daqueles que servem de coadjuvantes aos galãs, dançando ao fundo do enquadramento durante algum número musical.
Podendo enfim realizar um filme queer tipicamente brasileiro, em um cenário distante do molde estereotipado da comédia televisiva sudestina, porque ainda resumir o Ceará a uma praia paradisíaca indistinta, rendendo-se a tantos códigos antiquados do cinema hollywoodiano? Por que se ater à narração em off do personagem se explicando no começo e no final (recurso quase obrigatório do cinema-Netflix); à participação especial de uma estrela no desfecho (procedimento padrão das comédias Globo Filmes); ao mundo-umbigo de um herói distante das obrigações de qualquer adulto funcional? Existe um incômodo ao se deparar com filmes a respeito de identidades não-hegemônicas que se esforçam tanto para se inserir em moldes hegemônicos, ao invés de se distinguir orgulhosamente, assumindo sua singularidade. Pode-se falar, em conclusão, num cinema LGBTQIA+ assimilacionista.