Marcello Mio (2024)

Eu sou um outro

título original (ano)
Marcello Mio (2024)
país
França
gênero
Drama, Comédia
duração
121 minutos
direção
Christophe Honoré
elenco
Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Fabrice Luchini, Melvil Poupaud, Benjamin Biolay, Nicole Garcia
visto em
Cinemas

I started a joke
Which started the whole world crying
But I didn’t see
That the joke was on me

(1.) É evidente que Marcello Mio busca prestar uma grande homenagem ao ator Marcello Mastroianni. Ao escalar a atriz Chiara Mastroianni (cujos traços se assemelham bastante àqueles do pai) e a ex-companheira, Catherine Deneuve (mãe de Chiara), o diretor Christophe Honoré revisita os principais filmes da carreira do ator-principal-ausente, desde Noites Brancas até o clássico A Doce Vida, citado na abertura e na conclusão. Para quem procura o prazer cinéfilo (um jogo dos sete erros composto de inúmeras referências), o projeto constitui um prato cheio.

Além disso, o diretor procura mimetizar o estilo livre e onírico dos filmes de Fellini, o que inclui A Doce Vida, mas, principalmente, Oito e Meio. A personagem principal, Chiara, entra em crise existencial. Passa a vagar pelos sets de filmagem e as noites de Paris, tateando sua própria identidade à sombra dos genitores mais famosos. No caminho, encontra amigos, desafetos, outras pessoas de quem cuidar (o cachorro, o militar inglês), ou por quem ser cuidada (a mãe, os amigos Fabrice Luchini, Benjamin Biolay e Melvil Poupaud). 

(2.) Ora, neste esforço rumo a certa magia delirante, própria às fábulas circenses de Fellini, Honoré se afasta tanto da melancolia dos anos 1960 quanto das práticas habituais de um cinema contemporâneo. Aproxima-se, em contrapartida, da sátira corrosiva ao mundo do espetáculo, focada na dura vida dos atores (mesmo em se tratando dos nomes mais prestigiosos e afortunados do cinema francês). Ótimos momentos decorrem de Chiara preparando-se para um teste de elenco, com ajuda da mãe, até a filha se virar a Deneuve e lhe perguntar qual foi a última vez em que a veterana teria passado por um teste para conseguir seus papéis.

Para além da nostálgica homenagem e da engraçada sátira, existe um aspecto amargo que atravessa Marcello Mio. Trata-se da ridicularização.

A cena envolvendo a cineasta Nicole Garcia, criticando o estilo de atuação de Chiara, permite ultrapassar a dimensão superficial do elogio para adentrar uma crônica palpável das artes dramáticas enquanto profissão. Os personagens, interpretando uma versão fictícia de si próprios, comentam projetos dos quais de fato participaram, e diretores com quem trabalharam de verdade. Recebem a possibilidade de criar para si próprios uma personalidade carente ou controladora fora das câmeras. O aspecto de segredo dos bastidores faz com que Luchini encarne uma visão fraterna e desesperada por afeto, enquanto Poupaud faz as vezes do colega intrusivo, excessivamente agressivo.

(3.) Por isso, para além da nostálgica homenagem e da engraçada sátira, existe um aspecto amargo que atravessa Marcello Mio. Trata-se da ridicularização. Voluntariamente ou não (imagina-se que não), Honoré acaba por transformar sua protagonista feminina em uma figura patética, descontrolada, uma mulher cuja depressão a aproxima da loucura. (O termo gaslighting vem à mente). Na trama, Chiara anda fragilizada, e decide assumir a imagem do pai. Veste um cabelo parecido, além de terno, calça e sapatos sociais. Insiste em ser chamada por Marcello, e começa a falar em italiano. 

A heroína possui certa consciência de sua farsa, e volta a se comunicar em língua francesa quando necessário. No entanto, presta-se à humilhação patética de um programa italiano de televisão, sendo tratada pelos personagens e pelo próprio filme enquanto figura irresponsável, incapaz, fora de si. Há um abismo separando a hilária cena de abertura — quando Chiara Mastroianni faz as vezes de Anita Ekberg na Fonte de Trevi, diante de uma diretora histérica — e a sequência posterior, quando Chiara-Marcello retorna à fonte, sendo perseguida(o) por policiais. Na primeira vez, a crítica misturada com homenagem era evidente. Na segunda, o humor se esvai diante da insistência de Honoré de que estaríamos assistindo a um momento triste e profundo na vida da atriz.

(4.) Logo, Marcello Mio se assemelha a uma longuíssima piada que jamais chega à punchline, e insiste em não ser considerada como humor. Experimente alongar indefinidamente a premissa de uma esquete para testemunhar os rostos confusos e desagradáveis do público. “É uma farsa sem graça” afirma um diálogo, o que talvez se aplique à iniciativa em sua totalidade. Honoré, enquanto diretor e roteirista, parte de uma ideia ousada e criativa, porém nunca sabe ao certo para onde deseja levá-la. Afunda-se conforme acumula indecisões de tom (o número musical de Deneuve, nos minutos finais) e instantes de infantilização da protagonista.

Parte da experiência poderia se resumir a um longo episódio de 10%, a divertida série francesa em que atores encarnam versões de si próprios — mais histriônicos, mais solitários, mais irresponsáveis, ao gosto de cada episódio. No entanto, outra parte remete ao cineasta pedindo ao espectador que leve esta pequena traquinagem a sério, enquanto homenagem consistente e investigação profunda de uma psique perturbada. É preciso escolher entre abordar este ponto de partida rocambolesco pelo viés da melancolia, da crônica de costumes ou da comédia screwball — os três juntos não convergem.

(5.) Além disso, a comédia dramática representa o travestimento de forma bastante incômoda. Chiara, a personagem, jamais se identifica como trans, mas o roteiro passa a encarar as vestes tipicamente masculinas enquanto algo afrontoso, vulgar, burlesco — uma tentativa de enganar as pessoas ao se passar por aquilo que não é. A percepção de um indivíduo como alguém de outro sexo se torna motivo de conflito, e gesto de inadequação. Chiara veste-se como homem porque possui problemas de saúde mental (rumo à conclusão, os amigos desconfiam de suas tendências suicidas quando a veem se dirigindo ao mar).

Por isso, é possível enxergar um caráter preconceituoso e transfóbico na abordagem — lembrando que a transfobia não afeta apenas pessoas trans, comunicando-se com uma percepção binária e normativa de adequação do corpo e da identidade. Chiara, vestida como Marcello, torna-se engraçada, ofensiva, absurda e equivocada, necessitando de uma intervenção urgente. Ela nunca é percebida de maneira comum, ou como alguém que se encontra no travestimento, somente uma figura deslocada. A imagem de uma sexualidade diferente se converte em máscara para o real — e a realidade significaria, neste caso, a conformidade ao gênero biológico.

É improvável que Honoré tenha pensado nestes aspectos, ou se munido de intenções LGBTfóbicas ao criar seu longa-metragem. No entanto, o problema reside justamente no fato de não ter cogitado as implicações óbvias de sua iniciativa, escondendo-se atrás da picardia de emular Fellini e brincar com a imagem de Marcello Mastroianni. Ora, não estamos mais nos anos 1950-60, e a representação dos indivíduos (de seus corpos, de sua subjetividade) passa por códigos distintos. Marcello Mio oscila com facilidade entre a viagem doce e lúdica e a homenagem desgovernada, de gosto duvidoso. Por trás de cada pequeno sorriso despertado pelas interações de Chiara-Marcello, paira a dúvida incômoda se deveríamos, de fato, estar rindo deste teatro. 

Marcello Mio (2024)
5
Nota 5/10

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