O Porão da Rua do Grito (2022)

Despossuídos

título original (ano)
O Porão da Rua do Grito (2022)
país
Brasil
gênero
Terror
duração
90 minutos
direção
Sabrina Greve
elenco
Giovanni de Lorenzi, Carol Marques da Costa, Chris Couto, Giovanni Gallo, Beatriz Morelli, Douglas Simon, Eliana Guttman, Nycolas França
visto em
46ª Mostra de São Paulo (2022)

Os irmãos Jonas e Rebeca ainda vivem no casarão onde os pais morreram, num incêndio, muitos anos atrás. Aparentemente, a dupla nunca cogitou sair dali. Eles deixam um botijão de gás à vista na cozinha, além de fósforos por perto. A parede preserva o aspecto queimado, sem uma nova camada de pintura. Há um aspecto perverso nestas duas figuras, como fantasmas, presas à cena da tragédia, e sem conseguir efetuar o luto do ocorrido. Teria sido fascinante entender a psique de ambos, no entanto, o filme jamais desenvolve a psicologia deles.

Pelo contrário, serão definidos por estas únicas características: a orfandade e a interdependência. Paira um aspecto incestuoso entre os jovens, porém, jamais trabalhado. Jonas oscila entre a paranoia, a esquizofrenia, a melancolia e a depressão profunda. Ele não consegue sair de casa, funcionando como espelho para a curiosa criança presa no porão. O menino está ao mesmo tempo preso e solto, intimamente vigiado, e deixado numa liberdade quase selvagem. Ora aparece amarrado, ora vaga pelos cômodos da casa sem ser percebido. É um mistério como teria sobrevivido até então, posto que não come, não cozinha, não recebe cuidados mínimos.

O Porão da Rua do Grito está bastante preocupado em resgatar um imaginário clássico e gótico do horror estrangeiro. Estão presentes o casarão mal-assombrado, com fantasmas nobres; os colares e joias dos mortos; os quadros dos aristocratas que morreram ali; a criança sombria que pode ou não existir de fato; o rapaz cujo encarceramento beira a crise de violência, em moldes O Iluminado; a avó doente cuja constituição remete à monstruosidade e reafirma a presença insistente da morte na casa. Os irmãos, em consequência, lembram mortos-vivos, zumbis pairando sem rumo. 

O aspecto de maior potencial provém da relação entre estes códigos e a história do Brasil. A diretora Sabrina Greve busca efetuar uma conexão entre a independência do país — a Rua do Grito existe de fato, no bairro do Ipiranga, em São Paulo — e a libertação de Jonas e Rebeca, presos ao imóvel e às lembranças dolorosas. No entanto, a metáfora jamais se aprofunda, nem desenvolve: restam duas breves menções soltas no início e na conclusão, como pensamentos a posteriori, concebidos em pós-produção. Ao longo da trajetória, a obra se contenta com o imaginário norte-americano ou europeu, e um tanto anacrônico — ou talvez, na concepção dos criadores, universal e atemporal.

Jonas e Rebeca são desprovidos de desejos, objetivos, latências. O menino preso ao porão, comportado e asseado ao limite do robótico, jamais provoca qualquer dilema duradouro.

Esta mesma jornada poderia soar mais complexa caso os protagonistas tivessem atividades e conflitos no espaço-personagem do casarão. Ora, os cômodos espaçosos se limitam a um fundo teatral, com os quais os órfãos interagem pouco. A câmera evita investigar a geografia dos corredores e quartos, utilizar a cozinha, os fundos, os banheiros. Jonas permanece o dia inteiro neste local, sem qualquer ocupação visível. A irmã sai duas vezes para resolver pendências no banco, passa o dia inteiro fora e, na volta, tem um namorado novo — que revela dotes de encanador quando a característica convém à trama. 

Jonas e Rebeca são desprovidos de desejos, objetivos, latências. O menino preso ao porão, comportado e asseado ao limite do robótico, jamais provoca qualquer dilema duradouro — e caso os jovens precisem, existe sempre uma barra de ferro ou martelo à disposição. A narrativa carece de tensão, de um senso de urgência ou inevitabilidade: na ausência de planos ou vontades definidas, os heróis somente vagam de um lado para o outro. Eles não têm comida em casa, mas encontram dinheiro para comprar canos. Guardam um segredo sombrio, porém deixam a porta da frente aberta. Mantêm uma avó debilitada no andar de cima, ainda que jamais cuidem de fato dela.

A ausência de drama e desenvolvimento se torna tão flagrante que os atores ficam perdidos em suas composições. Giovanni de Lorenzi compõe um adolescente de intensidade cinco graus acima do verossímil, sempre prestes a explodir, evitando oscilações na construção deste menino de imaginário gótico, cabelos sujos e olhar vidrado. Já Carolina Marques da Costa imagina uma garota de fala apática, olhar desafetado, blasé — razão pela qual os gritos de surpresa e dor, adiante, soam desproporcionais. A direção não constrói uma única cena de intimidade entre as figuras supostamente fusionais.

Por isso, eles soam indiferentes e explosivos; infantis e adultos demais na decisão de cuidar da avó doente e da criança presa. São, ao mesmo tempo, pais e filhos, além de marido e mulher simbólicos, ou ainda carcereiros e prisioneiros; sequestradores e vítimas. O Porão da Rua do Grito decepciona sobretudo face ao potencial que tinha em mãos, no que diz respeito à representação da libido, do luto, do fetiche. O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, O Iluminado, Louca Obsessão e Os Outros são referências possíveis, ainda que habitem um horizonte distante. 

Resta a configuração de uma produção polidíssima, com imagem ultra nítida, focos de luz preciosos e recortados como num spot publicitário, além de trilha sonora invasiva e efeitos bruscos de som para sugerir medo e surpresa. A pós-produção se esforça para imprimir o medo e o horror ausentes nas imagens — com a exceção de duas cenas gore, que rompem com a linearidade dos jovens desinteressados. Não é difícil imaginar esta produção num serviço de streaming, que parece apropriado a esta ambientação contemporânea, brilhosa, asséptica.

Enquanto primeira experiência na direção de longas-metragens, a obra revela a coragem de sua autora, que já havia experimentado o cinema de horror enquanto atriz. O cinema brasileiro precisa se lançar nas águas do cinema de gênero para testar seus limites e à adequação à cultura nacional — caso em que alguns filmes serão mais bem-resolvidos do que outros. Em contrapartida, o resultado não resolve a contento o encontro entre o horror de séculos atrás e sua versão contemporânea, entre a simbologia e a concretização, ou ainda entre a dramaticidade e o horror.

O Porão da Rua do Grito (2022)
3
Nota 3/10

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