Manodrome (2023)

O fetiche do caos

título original (ano)
Manodrome (2023)
país
Reino Unido, EUA
gênero
Drama, Suspense
duração
95 minutos
direção
John Trengove
elenco
Jesse Eisenberg, Adrien Brody, Odessa Young, Sallieu Sesay,
Philip Ettinger, Ethan Suplee, Evan Joningkeit, Caleb Eberhardt, Gheorghe Murensan
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Manodrome é um filme intenso. O diretor John Trengove busca ser ágil, produzindo um impacto crescente em cada imagem, cena após cena. A abertura revela o seio de uma mulher (a produtora Riley Keough) amamentando seu bebê, e sendo observada com fixação erótica pelo motorista Ralph (Jessie Eisenberg). Ele é repreendido de imediato por isso. Em casa, a namorada cobra mais atenção ao fato que o bebê está prestes a chegar. Os amigos cobram um corpo mais sarado na academia, mais dinheiro para comprar um par de tênis, um melhor trabalho.

Ora, este indivíduo se sente fracassado, e o cineasta busca demonstrar como sujeitos frágeis mentalmente se tornam alvos preferenciais de cultos que pretendem entender a “dificuldade” de ser homem branco e heterossexual nos Estados Unidos contemporâneos. Aos poucos, ele tem contato com o grupo do título, uma espécie de estímulo à virilidade, à força bruta, ao suposto direito masculino de domínio social. Os membros abandonaram as esposas e namoradas para viver apenas entre eles, num chalé isolado, onde comemoram os dias de celibato tal qual um Alcoólicos Anônimos. 

Devido às ideias pregadas pelos participantes, haveria claras conexões com grupos neonazistas e supremacistas brancos. O espectador pode ter uma noção muito clara destes sujeitos grosseiros e violentos a partir do imaginário que circula pela mídia. No entanto, Trengove concebe uma reunião de aparência paterna e gentil, incluindo homens de suéter, trocando receitas pelos corredores e promovendo uma espécie de cura pseudoterapêutica. Estamos mais próximos dos cursos de coaches e práticas de constelação familiar do que de coordenações políticas visando destruir minorias e atear fogo em instituições contrárias aos direitos civis. 

Aí reside o perigo de Manodrome: o filme soa apaixonado demais pela estética do impacto, pela representação cool, pop e intensa do caos, para se dissociar dela.

Ralphie se encanta com uma rapidez espantosa pelas ideias do líder Dan (Adrien Brody). Talvez por constituir um jovem de evidentes problemas psíquicos, ou talvez porque o cineasta manifeste um prazer evidente pela decadência do “sujeito comum”, uma vez que o simples motorista de Uber integra o grupo, ninguém mais recebe qualquer atenção. (O roteiro efetua um belo trocadilho entre Uber Man e o Übermensch nietzschiano). Eisenberg se esforça ao máximo, fechando o rosto, erguendo os olhos, sustentando a expressão de quem está prestes a explodir a qualquer cena. 

Este seria um Assassinos por Natureza do século XXI, ou talvez um Cisne Negro dos cultos masculinistas. Em outras palavras, uma obra alarmante, que pretende avisar o espectador sobre os perigos de uma ideologia reacionária crescendo nos círculos pauperizados e invisibilizados das metrópoles. Surpreende bastante que os estúdios Universal tenham financiado e apoiado o longa-metragem nestes exatos termos, incluindo cenas tão brutais e polêmicas, sobretudo na segunda metade. Esta seria uma boa prova de que ainda há vida inteligente e ousada dentro das majors — pelo menos, na Universal Studios de Batem à Porta e Não! Não Olhe!

No entanto, o estilo panela de pressão possui seus limites. Passada a surpresa da conclusão, muito eficaz em termos de sensações e ritmos, os questionamentos se fazem presentes. Em primeiro lugar, o grupo soa pouco verossímil: o que alçou Dan à posição de líder? Como um núcleo focado na força, nas armas e na misoginia não apresenta qualquer outro problema com policiais para além da situação específica de Ralph? Eles não possuem ambição política, nem organizam ações concretas? Como são financiados, e de que maneira sustentam o relativo anonimato?

Teria sido comum, e desejável, comprovar tanto a periculosidade desta organização quanto aquela de Dan, para acreditarmos no potencial desta ideologia. Ora, da maneira como é mostrado, o Manodrome inclui uma única “maçã podre”, o sujeito particularmente destoante, ao invés de um representante médio. O desenvolvimento mínimo de outros membros, em termos de debilidade emocional e financeira, teria sido importante para que o protagonista enxergasse nos colegas um outro de si mesmo. O filme alivia na descrição deste coletivo, reforçando seus ares democráticos e aceitáveis: eles soam moralmente questionáveis, porém não criminosos.

Além disso, a narrativa de 95 minutos precisaria de mais de tempo para construir sua gradação. Ideais absurdos como “Não existe Deus, exceto por Ralph” necessitaria trabalhar as hesitações, as divergências internas, as brigas por poder, etc. Neste caso, o protagonista se torna tão facilmente manipulável que escuta as frases de efeito uma, duas vezes, e sai literalmente esmurrando qualquer pessoa à sua frente. Os delírios do jovem, que enxerga ultrajes imaginários nas ruas (um Papai Noel abaixando as calças, por exemplo) funcionam melhor enquanto imagem-bomba do que na elaboração de uma psique estafada.

Aí reside o perigo, ou pelo menos o aspecto problemático de Manodrome: a dificuldade de dar um passo atrás, respirar e questionar a descida aos infernos do motorista. O filme soa apaixonado demais pela estética do impacto, pela representação cool, pop e intensa do caos, para se dissociar dela. As crises de Ralph com os colegas de seita são acompanhadas de câmera tremida, efeitos sonoros exagerados e trilha sonora com orquestração gigantesca. O ator grita a plenos pulmões, e Trengove garante que o instante constitua uma catarse para todo mundo — inclusive para o espectador.

Logo, pode-se falar num encantamento com a linguagem fascista que o drama supostamente denuncia. As longas caminhadas na academia, em plano-sequência, com um intenso contraluz e trilha de heavy metal, servem de estímulo emocional não apenas a Ralph, mas também ao público. Ao adotar o ponto de vista único e indissociável do rapaz, o filme perde a oportunidade de demonstrar empatia pela namorada Sal (a excelente Odessa Young, muito à vontade na troca de diálogos), ou com o trabalhador gay Ahmet (Sallieu Sesay). Em nenhum momento a câmera passa a estranhá-lo, se distanciando dele, solicitando que questionemos suas atitudes e nos identifiquemos com outras figuras. 

O olhar do espectador embarca no trem desgovernado e não consegue parar antes do estouro final. Em consequência, o prazer de ver o circo pegar fogo se mostra superior à vontade de analisar o incêndio. Fassbinder já havia sido acusado de realizar filmes fascistas que denunciavam o fascismo (em Lili Marlene), e mais recentemente, Padilha foi criticado por tornar a violência brasileira empolgante em obras que se pretendiam antiviolência (caso notório de Tropa de Elite). Em chave semelhante, existe o risco de Manodrome constituir um filme antifascista com apreço demais pela perversidade de seu protagonista para criticar de maneira eficaz o fascismo.

Manodrome (2023)
6
Nota 6/10

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