Uýra — A Retomada da Floresta (2022)

A natureza humana

título original (ano)
Uýra – A Retomada da Floresta (2022)
país
Brasil, EUA
linguagem
Documentário
duração
72 minutos
direção
Juliana Curi
com
Uýra Sodoma, Zahy Guajajara
visto em
Cinemas

O documentário se aproxima de maneiras muito diferentes de seu tema e sua personagem principal. Há vários inícios em Uýra – A Retomada da Floresta, assim como haverá muitas propostas de conclusão, 70 minutos mais tarde. A tela se abre com uma lista de nomes de artistas. Seriam todos militantes pela causa indígena? Pessoas perseguidas pelo ativismo, pela orientação sexual ou identidade de gênero? Em seguida, um plano aéreo da floresta destruída. Então outro, trazendo uma performance silenciosa no interior de uma gruta.

O projeto adota uma estrutura bastante particular. Se há um elemento que realmente desperta atenção nesta experiência, ele se encontra na montagem proposta por Lucas Camargo de Barros, Lívia Cheibub e Renan Cipriano. Esqueça qualquer forma de desenvolvimento linear e cronológico; de imagens agrupadas por afinidade de temas ou tons; de sequências organizadas por contraste ou afinidade de falas. Adota-se uma lógica de fluxo contínuo, alternando cenas tão potentes quanto desconexas, semelhantes a flashes dispersos de uma reflexão ecológica e social ampla. 

Isso significa que, ocasionalmente, surgem frases na tela, embora elas não introduzam um novo capítulo, nem organizem as imagens numa disposição particular. “Uma terra pelada”, “Reconhecem-se espécies pioneiras”, “Para a sucessão ecológica”, apontam os lembretes. Uma voz em língua indígena, rara na sociedade e raríssima no cinema, introduz pequenos fragmentos narrados, que tampouco se desenvolvem enquanto elemento autônomo ou diegético. “Você enxerga? Sem medo?”, indaga a voz de Zahy Guajajara.

A imersão na proposta dependerá muito da disposição do espectador a navegar por esta estrutura rizomática, espécie de caleidoscópio interligando Uýra, a preservação da natureza e as noções de identidade e pertencimento.

Uma performance de Uýra será cortada em duas partes e espalhada pela montagem. A apresentação inicial se completa apenas numa cena pós-créditos. A coreografia denunciando a poluição das águas em Manaus é vista parcialmente junto à criadora, e depois, pelo ponto de vista do público posicionado numa ponte. No entanto, as demais criações se desenvolvem apenas para o olhar solitário da câmera, além de visarem o espectador presumido na sala de cinema. Alguns instantes se concentram na vida diária da figura transexual e não-binária, conversando com amigas e comprando frutas. Entretanto, a espontaneidade do dia a dia se interrompe por aí.

A imersão na proposta dependerá muito da disposição do espectador a navegar por esta estrutura rizomática, espécie de caleidoscópio interligando Uýra, a preservação da natureza e as noções de identidade e pertencimento. Ora a diretora Juliana Curi demonstra o interesse em captar o real, de maneira distanciada, ora recria interações em estilo fictício, para os propósitos da câmera (a festa, o encontro ao lado da estátua). Ora transforma a artista num objeto de estudo, ora a convida a controlar o discurso e a narrativa, em função de coautora. Às vezes se abre ao acaso, às vezes demonstra profundo interesse no controle de acontecimentos e da estética. Do mesmo modo, imagens de textura impecável se encontram com outras pixelizadas, próximas da captação amadora; e a narração em off limpíssima se contrasta com o som deficiente na interação entre Uýra e uma amiga.

Uýra – A Retomada da Floresta se converte numa espécie de jam session cinematográfico, com tudo o de positivo e possivelmente negativo que isso possa representar. Por um lado, cria-se uma narrativa agradável, coesa em seu tom etéreo, além de bastante sucinta. Por outro lado, alguns elementos de pós-produção beiram a aleatoriedade. A liberdade se aproxima do tudo-vale, abrindo mão da intencionalidade e do discurso articulado em nome de um utópico tenho o direito de fazer o que me dispuser. (Uma verdade, aliás). 

Este horizonte de utopias se justifica pelo discurso da obra e pela afinidade com o ponto de vista da artista e ativista. “O impossível está por vir, e o imaginário nos é devido”, ela declara. Por isso, promove oficinas de maquiagem e performance voltadas à expressão da ancestralidade de pessoas negras, indígenas e queer (e, frequentemente, todos estes ao mesmo tempo). Peças de teatro favorecem o encontro com a própria identidade através da cultura e da encenação. É notável o investimento da protagonista em cada uma destas atividades.

Ao mesmo tempo, Uýra se comunica em linguagem calma, durante falas digressivas, ponderadas. O filme evita a estratégia da denúncia e da urgência, preferindo a política dos afetos à política institucional. Nunca se nomeiam partidos ou políticos responsáveis por atos de violência contra a natureza e contra minorias sociais. Tampouco se enfrenta de maneira direta a ideologia adversa. Ao invés de um posicionamento contrário a algo, Curi opta por uma construção propositiva, positiva. Prefere que os personagens se empoderem, compartilhem experiências, sintam-se melhores uns com os outros. As mudanças práticas seriam consequências diretas desta tomada de consciência.

A ideia mais preciosa do projeto nasce da junção entre preservação ambiental e preservação da diversidade sexual e de gênero. A protagonista sugere que o movimento de destruir rios e florestas estaria intimamente ligado àquele de atacar pessoas trans, travestis, não-binárias. O desprezo pelo outro, pela diferença, por aquilo que não me representa um ganho imediato, um consumo instantâneo, um lucro garantido, se encontraria na raiz de um movimento predatório e violento. Por isso, a resposta a tal brutalidade se encontraria na doçura das formas e dos posicionamentos. Para um indivíduo trans e não-binário, transitar pelos espaços públicos constitui um gesto de resistência.

Ao final, o espectador terá conhecido pouco de Uýra em termos fatuais — sua origem, seus deslocamentos, a compreensão de sua identidade de gênero, as conquistas práticas desta política da arte. Resta uma acepção muito mais ampla do reconhecimento de que fazemos parte da natureza, de que somos um só com as florestas, águas e animais. O conceito de natureza humana encontra-se no centro deste cinema humanista, talvez de vertente mais psicológica do que sociológica, e mais intimista do que intervencionista. Comecemos então por nos compreender, nos olhar nos olhos, nos cuidar. Este parece ser o raciocínio sereno, quase meditativo, do longa-metragem.

Uýra — A Retomada da Floresta (2022)
6
Nota 6/10

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