A Invenção do Outro (2022)

Todo mundo é o outro de alguém

título original (ano)
A Invenção do Outro (2022)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
144 minutos
direção
Bruno Jorge
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Em primeiro lugar, vale destacar algumas proezas conquistadas por este documentário no que diz respeito ao retrato de povos originários. Em equipe minúscula (acumulando as funções de diretor, roteirista, diretor de fotografia e montador), Bruno Jorge observa os indígenas Korubo com horizontalidade ímpar. Isso significa que desaparecem os olhares de condescendência, assim como o fetichismo normalmente associado ao retrato de grupos sociais distintos do nosso (branco, urbano, etc.). Não somos convidados a admirar este povo por sua “pureza”, sua ingenuidade, nem com piedade em decorrência do extermínio que vêm sofrendo.

Em chave oposta, tampouco são enaltecidos pelo suposto heroísmo, pela força, ou por representarem um ideal de vida natural e anticontemporânea. Posto que tantos documentários (em especial, aqueles próximos da reportagem televisiva) observam estes indivíduos no intuito de destacar suas peculiaridades, este filme se valoriza por tudo aquilo que não faz, ou seja, pelas armadilhas evitadas. Respira-se com certo alívio diante da proposta de se aproximar dos indígenas para compreender seu pensamento, cultura e luta política, sem julgamentos morais.

A respeito desta aproximação, o posicionamento da câmera e o dispositivo cinematográfico se mostram exemplares. O cineasta se encontra perto das peles, dos corpos e das reuniões familiares entre os Korubo. No entanto, jamais aparenta interferir no meio, nem produzir ações artificiais ou encenadas para as necessidades do filme. Aqui, é a câmera que se adequa ao mundo, ao invés de moldar este último às vontades da direção. Tamanha naturalidade dos personagens diante do aparelho com o qual não estão acostumados se justifica pela evidente intimidade do autor com o grupo. Há uma relação de confiança, prévia ao filme, cuja qualidade transparece em cada cena.

O filme diminui o máximo possível a distância hierárquica entre o filmante e o filmado no que diz respeito ao controle do discurso. Evita, assim, reproduzir por meio do cinema uma lógica exploradora e colonialista.

Logo, os indígenas se convertem em sujeitos do projeto, ao invés de objetos de estudo. Tanto eles quanto os indigenistas da Funai e médicos da Sesai coordenam as caminhadas, determinam os rumos da narrativa, e podem se expressar com liberdade em frente ao dispositivo. É claro que existem escolhas de montagem, som e enquadramentos que refletem a seleção do autor. Entretanto, diminui-se o máximo possível a distância hierárquica entre o filmante e o filmado no que diz respeito ao controle do discurso. Evita-se, assim, reproduzir por meio do cinema uma lógica exploradora e colonialista.

Estas opções estéticas não implicam numa rendição servil àquilo que os personagens tenham a oferecer ao diretor. A Invenção do Outro persegue um equilíbrio saudável entre o estetismo e o naturalismo. Em outras palavras, visa transitar entre a apreensão do real, da maneira menos invasiva possível, e a proposta de construções (em termos de enquadramento, profundidade de campo, iluminação) que não se encontram em estado bruto na natureza. Nem “humildade” servil ao meio, nem egocentrismo de um diretor vaidoso: Jorge se esforça para atingir um caminho de construção responsável, em co-autoria com os Korubo.

Em determinados momentos, a câmera se limita a percorrer as matas e seguir a rotina diária do grupo de homens que se aproxima, dia após dia, dos familiares afastados há muito tempo. Descobre-se como pescam e caçam, de que maneira preparam a comida, quais são os cantos entoados em cada cerimônia. Testemunha-se o corte de cabelo de si próprios e dos brancos que os acompanham, além das piadas de cunho sexual, e das violentas palavras de ordem em relação aos grupos rivais. Desconstrói-se a percepção estereotipada de indígenas vimitizados porque pacíficos e ingênuos. Há uma delicada política a praticar, por parte de Bruno Pereira e demais membros da Funai, na gestão institucional do conflito sanguinário envolvendo diferentes povos da região.

Em contrapartida, algumas sequências adiante, encontram-se câmeras lentas durante o salto feliz de irmãos que se reencontram, ou na imagem dos pés se erguendo do chão. Às vezes, elimina-se o som direto para favorecer um canto indígena tratado em pós-produção. À medida que a narrativa abraça os sentimentos, decorrentes do reencontro entre familiares, a montagem envereda por algo próximo do transe, ou uma suspensão etérea dos perigos. Elabora-se uma poesia simples, orgânica, composta pelos personagens e elementos previamente existentes no cenário (ou seja, sem introduzir trilha sonora lacrimosa de fora, falas obtidas por terceiros em off e demais acessórios a posteriori). Mesmo a delicadeza provém da terra e das pessoas.

A Invenção do Outro encanta por privilegiar a ética e a política da Funai em relação aos povos originários. Como ajudá-los e protegê-los de forma respeitosa, sem impor a eles nosso modo de vida? Como oferecer ajuda médica, sanitária e de proteção contra inimigos, sem armá-los até os dentes e incentivar o acirramento dos embates? De que maneira se tornar um parceiro atento, capaz de preservar a cultura os hábitos alheios? Ocasionalmente, os personagens contestam as sugestões ou ordens dos indigenistas: “Branco não vai me dizer as regras. Eu que decido”

Isso permite enxergar os protagonistas na posição de sujeitos dotados de personalidade forte e subjetividades múltiplas. Alguns serão mais impulsivos, e outros, mais prudentes. Uns tendem à catarse do choro, já os demais se contêm. Desaparece a ideia destes povos enquanto uma unidade homogênea, no sentido empobrecedor do termo. Trata-se de vivências diversificadas, manifestando opiniões políticas contrárias. O debate diário acerca dos próximos passos a tomar domina os rumos do filme tanto narrativos quanto ideológicos.

O belo título ilustra as minúcias da relação com a alteridade. Segundo o nome escolhido, a diferença não seria natural, mas inventada, criada aos nossos olhos. Afinal, preconceitos não nascem em nenhum indivíduo, sendo desenvolvidos pela família, comunidade e demais grupos sociais. A percepção do outro se torna possível enquanto algo diferente do eu, separado de mim, apartado da minha experiência. Ao mesmo tempo, preciso determinar onde começa e termina o diferente para me posicionar em relação à minha moral, minhas atitudes e princípios. 

A alteridade serve a precisar aquilo que não somos, algo que se acentua diante de uma obra com tantas conversas em linguagem indígena, com maneiras de expressar sentimentos, sexualidade, identidade e coletividade distantes de nosso costume. Ao mesmo tempo, os Korubo fazem chacota com o cabelo dos brancos, a roupa dos brancos, a comida dos brancos, deixando claro que, para eles, os exóticos e incompreensíveis somos nós. Esta equivalência de olhares, transmitida na curiosidade das mulheres indígenas diante da enfermeira branca, contextualiza a percepção alheia num domínio puramente cultural, ao invés de intrínseco e imanente.

Se há um único elemento que se destaca negativamente (e que seria, de fato, um detalhe muito pequeno), ele se encontra na quantidade de erros de português nos letreiros e nas legendas embutidas. Como um texto que certamente passou por tantos olhares, e atravessou inúmeros festivais, nunca se atentou à escrita? Sobretudo num filme em que a linguagem desempenha papel fundamental? Enfim, nada que perturbe, de modo algum, o mérito da construção imagética, discursiva e estética do longa-metragem. A Invenção do Outro transparece um amadurecimento cinematográfico, e de visão de mundo, bastante raro nas salas de cinema brasileiras.

A Invenção do Outro (2022)
8
Nota 8/10

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