Aldeotas (2022)

A vida sonhada dos artistas

título original (ano)
Aldeotas (2022)
país
Brasil
Gênero
Drama
duração
85 minutos
direção
Gero Camilo
elenco
Gero Camilo, Marat Descartes
visto em
46ª Mostra de São Paulo (2022)

Um dos principais interesses decorrentes este drama provém da natureza teatral. Em se tratando de uma peça respeitada e premiada, de que maneira o diretor e ator Gero Camilo transporia à linguagem cinematográfica o conteúdo verborrágico, a interação de apenas dois personagens com os cenários e a artificialidade do dispositivo? Como fazer para que o texto honrasse o teatro, sem se limitar a ele, utilizando o cinema como ferramenta para ampliar o alcance do discurso, ao invés de traí-lo? Diante de uma criação apreciada, os autores parecem ter mais a perder do que ganhar com a versão em filme. As comparações serão inevitáveis, e não necessariamente em favor do projeto adaptado.

A história começa do ponto que costumamos considerar o final: a morte. É o funeral de Elias (Marat Descartes), ocasião em que o poeta e grande amigo Levi (Gero Camilo) reaparece para prestar homenagem. Logo, o morto levanta de seu caixão e passa a interagir com o outro, que se mudou há décadas da cidade de Coti das Fuças. Conversam, matam a curiosidade (“Onde esteve esse tempo todo?”), tentam entender os respectivos motivos para ter ficado e partido. A trama inteira se situa, portanto, no passado realista, mas também no presente fantástico — duas instâncias que se cruzam, em idas e vindas. Este seria um filme-obituário, filme-epitáfio.

Os dez minutos iniciais constituem a parte mais árida da experiência. A direção não facilita a tarefa para o espectador, pelo contrário: abre-se aos atropelos, falando sem parar, cortando de uma cena curta a outra ainda mais curta, empregando um linguajar teatral, maneirista, posado. Para quem imagina que o cinema traria necessariamente um teor mais naturalista ao projeto, em virtude de sua ontologia fotográfica, o diretor confirma que apenas o simbolismo lhe interessa. Por isso, as atuações se tornam performances, os diálogos são declamados, e os cenários remetem à convenção de um tapume pintado sobre o palco teatral.

Para quem imagina que o cinema traria necessariamente um teor mais naturalista ao projeto, o diretor confirma que apenas o simbolismo lhe interessa.

Quando a narrativa se situa num flashback assumido e lúdico, investigando a infância dos amigos, Aldeotas enfim respira, perdendo o aspecto posado e rígido. Os atores ganham a oportunidade rara de interpretarem meninos de 5, 12 e 17 anos sem apelarem a uma caricatura grotesca, apenas tornando o corpo mais flexível, o olhar sonhador, a fala meio pidonha, imatura. Há distinções nítidas em cada fase, quando a infância se revela tanto pela nostalgia quanto pelo respeito e seriedade. Há um caráter sombrio por trás desta evocação da perda da inocência através de sucessivas violências.

Aos poucos, o texto encontra seu tom ideal entre a gravidade das sugestões e a leveza da imagem. Camilo opta por uma voz em off assustadora para sugerir o pai autoritário de Elias; manequins de loja para simbolizarem as meninas com quem ambos se relacionam; e o espaço fora de quadro para citar a menina amada, à beira da água, que pode ou não existir. O diretor nunca idealiza o passado, apenas retira dele a matéria de traumas e formações de afeto. Em chave psicológica e determinista, busca compreender os dois adultos à luz das experiências familiares e afetivas durante o crescimento. 

Logo, o diretor dispensa o potencial de materializar as sugestões, algo que seria muito fácil ao cinema. Ele poderia chamar atrizes para as meninas, recriar um lago ou clube à beira da piscina, filmar o pai abusivo e a reação da diretoria da escola aos poemas “subversivos” de Levi. No entanto, o espectador ainda se depara com dois únicos atores, sons pré-gravados e metonímias típicas do palco. A adaptação reafirma com orgulho sua natureza teatral, sua vocação à matéria de sonho, aludindo ao real ao invés de reconstituí-lo. Na ausência de pais, namoradas e professores, podemos imaginá-los como bem entendemos.

O que o cinema traz ao teatro filmado — compreendido enquanto escolha assumida, ao invés de um erro de percurso — é a capacidade de se aproximar dos rostos, de imprimir novos volumes, e brincar com ângulos e composições. A expressividade no cinema é diferente (o pequeno sorriso e os olhos marejados podem ser vistos de perto, com sutileza), e a boa escolha de lentes permite enxergar o humor tragicômico de dois adultos interpretando crianças, dentro do banheiro apertado da escola, confessando um episódio de abuso sexual. 

Quanto mais criativo e colorido se revela o dispositivo, mais incômodos são os temas refletidos por ele — um conceito de representação por oposição, ao invés de aderência. O horror colorido, engraçado, travestido de coming of age story, promove o distanciamento necessário à discussão sobre a pressão para garotos se provarem homens; o pavor misógino de tudo que represente a feminilidade e a sensibilidade; e a prisão rígida por trás do conceito de “família tradicional brasileira” — temas fundamentais nesta reta final de um regime de extrema-direita no Brasil. A sociedade castradora se faz presente pela ausência: descobrimos o peso de suas ações gracas à influência nas vítimas.

Ambos atores estão em pleno controle de seus personagens: Camilo força os olhos sonhadores, embora tamanha doçura beire o horror em instantes de violência (a cena da formatura); enquanto Descartes contrapõe esta escolha com um estilo despojado, o corpo entregue e a fala quase desleixada, algo muito propício à adolescência. Eles sugerem uma amizade profunda que também pode ser amor, admiração mútua, e projeção — Elias encontra em Levi a coragem de ser quem é; enquanto Levi enxerga em Elias um espelho da aceitação indisponível nos demais. 

Aldeotas funciona principalmente enquanto história de amizades num Brasil impiedoso, um terreno onde poetas buscam oferecer sua arte a uma sociedade que detesta a arte. A intimidade e o carinho entre os dois se tornam palpáveis, assim como a cumplicidade desenvolvida pelos atores. O resultado é embalado num projeto de baixo orçamento, de pretensões modestas, com alguns problemas de luz e som, e sem real intenção de corrigir cores ou trabalhar com maior expressividade as cenas fundamentais do carrossel no final, no dia nublado. Camilo não se mostra um diretor de cinema preciosista, deixando os atores errarem as falas e se corrigirem, e privilegiando o humanismo à estética. Neste aspecto, cumpre os objetivos propostos.

Aldeotas (2022)
6
Nota 6/10

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