All the Colours of the World Are Between Black & White (2023)

A câmera dos afetos

título original (ano)
All the Colours of the World Are Between Black & White (2023)
país
Nigéria
gênero
Drama, Romance
duração
93 minutos
direção
Babatunde Apalowo
elenco
Tope Tedela, Riyo David, Martha Ehinome Orhiere, Uchechika Elumelu, Floyd Anekwe
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

O filme parte de uma contradição essencial. Nas ruas de Lagos, a violência se espalha: pequenos ladrões são linchados no espaço público. Homens gays são espancados, outro que perturba a ordem é queimado por passantes, sempre dispostos a correr atrás de qualquer um apontado como culpado. No entanto, ninguém se surpreende: os atos de justiçamento fazem parte do cotidiano. Enquanto uma multidão espanca seu novo alvo, os vendedores seguem comercializando seus produtos. A vida continua.

Em contrapartida, dentro da casa de Bambino (Tope Tedela), impera uma doçura infantil. O rapaz trabalhador e tímido empresta o pouco dinheiro que tem a quem o solicita. Ele trabalha de maneira responsável, fazendo entregas pela cidade, e começa a questionar seus afetos. Por que nunca se interessou por uma menina? Ele é virgem, e sua melhor amiga, ambos adultos, também. O herói chega a perguntar no Google “Como saber se eu sou…”. A frase se interrompe, e é apagada. Não é possível nomear aquilo que não se elaborou internamente, pelo menos o mínimo.

O diretor Babatunde Apalowo enxerga neste espelhamento entre público e privado duas formas de agressão: uma explícita, e a outra, internalizada. No fundo, ambas esferas são igualmente opressoras ao jovem, que tem sua vida vigiada pelos moradores ao redor, sofrendo pressão para provar a masculinidade, para emprestar dinheiro, para aceitar a comida de uma mulher enxerida. “O que dirão os vizinhos?”, ele se pergunta, a partir do momento que conhece o simpático fotógrafo Bawa (Riyo David), de quem se torna amigo inseparável. Não se vive para si, apenas para os outros.

All the Colours of the World Are Between Black & White possui uma sensibilidade extraordinária para representar estes adultos infantilizados — não por incapacidade própria, mas porque a sociedade jamais lhes permitiu amadurecer o próprio afeto, a libido, o prazer. Bambino não compreende que é gay, porque nunca se dedicou a si próprio. As diversas noites ao lado da melhor amiga se assemelham aos encontros iniciais de dois pré-adolescentes. Ao mesmo tempo, a narrativa nunca nos convida a ter piedade deste homem, nem considerá-lo uma pobre vítima. Ele efetua um rápido e doloroso aprendizado ao longo da sucinta duração do filme. 

Contra a cegueira de si próprio e da sociedade para a óbvia homossexualidade de ambos, o dispositivo permite revelar (em muitos aspectos do termo) o que eles realmente sentem.

O cineasta permite que a jornada ganhe certo respiro através da intromissão de um humor sutil, leve. Os coadjuvantes são retratados inicialmente com o rosto cortado pelo enquadramento, ou posicionados através de objetos que obstruem nossa visão. Paira um aspecto absurdo nas interações com figuras jamais ouvidas, apenas escutadas fora de quadro — o patrão, os convidados atrás da estante, os clientes da loja de apostas. A simetria intensa dos quadros (na praça, no parque) desperta a sensação incômoda de artificialidade, muito apropriada ao estado de espírito do protagonista.

Em outras palavras, o humor nasce de fontes puramente estéticas, em oposição a diálogos explicativos ou gags de roteiro. Apalowo jamais ri dos seus personagens, apenas da situação improvável que se encontram — a colega tentando perder a virgindade, os amantes se encarando a metros de distância, em bancos simétricos. É o mundo quem está fora do lugar, não nossos doces protagonistas. O projeto adota um distanciamento exemplar para analisar criticamente a sociedade nigeriana, defendendo a conduta mais tolerante e empática dos personagens principais, por mais doloroso que isso soe.

Além disso, o estranhamento nasce do uso improvável, mesmo engraçado, da trilha sonora pomposa em instantes cotidianos. Sentado na cama de sua casa comum, o entregador tem os pensamentos inundados por uma trilha afetada, que remete ao cinema romântico de Wong Kar-Wai. Os amores silenciosos no quadro, o sofrimento elegante em silêncio, a sensualidade dos corpos e a ideia de um tabu prestes a explodir permitem estabelecer uma inesperada ponte entre este cinema nigeriano e preciosos referenciais asiáticos. Jia Zhang-ke seria outra fonte possível, pela maneira de retratar a cidade e pelas perambulações de motocicleta na avenida.

Na hora de compor seus planos, o autor apresenta um preciosismo singelo, de raro domínio de mise en scène. As paisagens estão repletas de quadros-dentro-do-quadro, quando batentes de porta e vigas sugerem a segmentação do espaço, além da opressão do homem ainda mais espremido pelos espaços (efetiva e simbolicamente). Os planos e contraplanos entre os homens que se desejam despertam um efeito magnético pela reprodução de close-ups intensos de ambos os lados. A montagem oferece saltos temporais inesperados, quando o rosto de um homem responde ao olhar do homem seguinte, em outro dia e lugar. Aparentemente, o amor ultrapassa tempo e espaço.

Em paralelo, a câmera fotográfica desempenha um papel narrativo essencial — e, por extensão, a câmera cinematográfica também. O título original “Todas as cores do mundo estão entre o preto e o branco” se articula de maneira quase literal: o filme se inicia com o rosto de Bambino, olhando para a câmera diante de um fundo branco, e se encerrará com o mesmo olhar e enquadramento, diante de um fundo preto. Neste entretempo, tudo e nada terá se resolvido para o motoboy: ele começa a compreender mais sobre si mesmo. Para o mundo lá fora, nada parece ter se alterado. No entanto, começa uma revolução interna no herói.

Aqui, a câmera significa uma profissão para Bawa, uma maneira velada de expressar o seu amor (Bambino se transforma no muso inspirador e principal objeto de estudo), um motivo para passar mais tempo com o outro. A câmera enxerga coisas que os dois não observam em si mesmos, representando, portanto, um ver além, ver mais do que o olho humano conseguiria. Contra a cegueira de si próprio e da sociedade para a óbvia homossexualidade de ambos, o dispositivo permite revelar (em muitos aspectos do termo) o que eles realmente sentem. Bela metáfora, simples e funcional, e bem desenvolvida ao longo dos diálogos (“Você me vê?”, pergunta a amiga).

Ao final, All the Colours of the World Are Between Black & White ultrapassa a armadilha de transformar o amor romântico em objetivo final, e de limitar a homoafetividade ao único conflito dos protagonistas. Há uma descrição palpável da sociedade pobre, condenada à malandragem, aos empréstimos, aos negócios escusos. As pessoas se viram como podem, e parte da revolta nas ruas nasce de uma injustiça social mais profunda. Como pregar a igualdade num lugar onde os cidadãos são estimulados a se voltar uns contra os outros?

Além disso, a fábula não se encerra no final feliz da concretização romântica, e sim no início de um processo de autoaceitação em meio adverso. Bambino conquista a si mesmo, ao invés de conseguir um namorado. O mesmo vale para a amiga, para Bawa. Evita-se o otimismo mágico, quando todos os problemas desaparecem para que os protagonistas possam sonhar juntos. O cineasta acredita em transformações possíveis, pequenas, calcadas no real. O sonho jamais se impõe sobre a realidade, mas ajusta-se a ela, timidamente. 

Em conclusão, o projeto propõe uma belíssima política dos afetos, uma ideia de reconstrução da comunidade baseada em pequenos avanços (vide as negociações no casamento de uma personagem). A exemplo do título, o mundo vive entre estes extremos da luz, da cor, do real. Tudo o que resta aos protagonistas precisa se encontrar entre estas duas pontas — impossível pensar em ir além. Numa sociedade desigual e opressora, onde a homossexualidade constitui um crime, Apalowo imagina uma câmera capaz de revelar amores e ensinar as pessoas a olharem (às vezes, para si mesmas).

All the Colours of the World Are Between Black & White (2023)
9
Nota 9/10

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