O filme parte de uma contradição essencial. Nas ruas de Lagos, a violência se espalha: pequenos ladrões são linchados no espaço público. Homens gays são espancados, outro que perturba a ordem é queimado por passantes, sempre dispostos a correr atrás de qualquer um apontado como culpado. No entanto, ninguém se surpreende: os atos de justiçamento fazem parte do cotidiano. Enquanto uma multidão espanca seu novo alvo, os vendedores seguem comercializando seus produtos. A vida continua.
Em contrapartida, dentro da casa de Bambino (Tope Tedela), impera uma doçura infantil. O rapaz trabalhador e tímido empresta o pouco dinheiro que tem a quem o solicita. Ele trabalha de maneira responsável, fazendo entregas pela cidade, e começa a questionar seus afetos. Por que nunca se interessou por uma menina? Ele é virgem, e sua melhor amiga, ambos adultos, também. O herói chega a perguntar no Google “Como saber se eu sou…”. A frase se interrompe, e é apagada. Não é possível nomear aquilo que não se elaborou internamente, pelo menos o mínimo.
O diretor Babatunde Apalowo enxerga neste espelhamento entre público e privado duas formas de agressão: uma explícita, e a outra, internalizada. No fundo, ambas esferas são igualmente opressoras ao jovem, que tem sua vida vigiada pelos moradores ao redor, sofrendo pressão para provar a masculinidade, para emprestar dinheiro, para aceitar a comida de uma mulher enxerida. “O que dirão os vizinhos?”, ele se pergunta, a partir do momento que conhece o simpático fotógrafo Bawa (Riyo David), de quem se torna amigo inseparável. Não se vive para si, apenas para os outros.
All the Colours of the World Are Between Black & White possui uma sensibilidade extraordinária para representar estes adultos infantilizados — não por incapacidade própria, mas porque a sociedade jamais lhes permitiu amadurecer o próprio afeto, a libido, o prazer. Bambino não compreende que é gay, porque nunca se dedicou a si próprio. As diversas noites ao lado da melhor amiga se assemelham aos encontros iniciais de dois pré-adolescentes. Ao mesmo tempo, a narrativa nunca nos convida a ter piedade deste homem, nem considerá-lo uma pobre vítima. Ele efetua um rápido e doloroso aprendizado ao longo da sucinta duração do filme.
Contra a cegueira de si próprio e da sociedade para a óbvia homossexualidade de ambos, o dispositivo permite revelar (em muitos aspectos do termo) o que eles realmente sentem.
O cineasta permite que a jornada ganhe certo respiro através da intromissão de um humor sutil, leve. Os coadjuvantes são retratados inicialmente com o rosto cortado pelo enquadramento, ou posicionados através de objetos que obstruem nossa visão. Paira um aspecto absurdo nas interações com figuras jamais ouvidas, apenas escutadas fora de quadro — o patrão, os convidados atrás da estante, os clientes da loja de apostas. A simetria intensa dos quadros (na praça, no parque) desperta a sensação incômoda de artificialidade, muito apropriada ao estado de espírito do protagonista.
Em outras palavras, o humor nasce de fontes puramente estéticas, em oposição a diálogos explicativos ou gags de roteiro. Apalowo jamais ri dos seus personagens, apenas da situação improvável que se encontram — a colega tentando perder a virgindade, os amantes se encarando a metros de distância, em bancos simétricos. É o mundo quem está fora do lugar, não nossos doces protagonistas. O projeto adota um distanciamento exemplar para analisar criticamente a sociedade nigeriana, defendendo a conduta mais tolerante e empática dos personagens principais, por mais doloroso que isso soe.
Além disso, o estranhamento nasce do uso improvável, mesmo engraçado, da trilha sonora pomposa em instantes cotidianos. Sentado na cama de sua casa comum, o entregador tem os pensamentos inundados por uma trilha afetada, que remete ao cinema romântico de Wong Kar-Wai. Os amores silenciosos no quadro, o sofrimento elegante em silêncio, a sensualidade dos corpos e a ideia de um tabu prestes a explodir permitem estabelecer uma inesperada ponte entre este cinema nigeriano e preciosos referenciais asiáticos. Jia Zhang-ke seria outra fonte possível, pela maneira de retratar a cidade e pelas perambulações de motocicleta na avenida.
Na hora de compor seus planos, o autor apresenta um preciosismo singelo, de raro domínio de mise en scène. As paisagens estão repletas de quadros-dentro-do-quadro, quando batentes de porta e vigas sugerem a segmentação do espaço, além da opressão do homem ainda mais espremido pelos espaços (efetiva e simbolicamente). Os planos e contraplanos entre os homens que se desejam despertam um efeito magnético pela reprodução de close-ups intensos de ambos os lados. A montagem oferece saltos temporais inesperados, quando o rosto de um homem responde ao olhar do homem seguinte, em outro dia e lugar. Aparentemente, o amor ultrapassa tempo e espaço.
Em paralelo, a câmera fotográfica desempenha um papel narrativo essencial — e, por extensão, a câmera cinematográfica também. O título original “Todas as cores do mundo estão entre o preto e o branco” se articula de maneira quase literal: o filme se inicia com o rosto de Bambino, olhando para a câmera diante de um fundo branco, e se encerrará com o mesmo olhar e enquadramento, diante de um fundo preto. Neste entretempo, tudo e nada terá se resolvido para o motoboy: ele começa a compreender mais sobre si mesmo. Para o mundo lá fora, nada parece ter se alterado. No entanto, começa uma revolução interna no herói.
Aqui, a câmera significa uma profissão para Bawa, uma maneira velada de expressar o seu amor (Bambino se transforma no muso inspirador e principal objeto de estudo), um motivo para passar mais tempo com o outro. A câmera enxerga coisas que os dois não observam em si mesmos, representando, portanto, um ver além, ver mais do que o olho humano conseguiria. Contra a cegueira de si próprio e da sociedade para a óbvia homossexualidade de ambos, o dispositivo permite revelar (em muitos aspectos do termo) o que eles realmente sentem. Bela metáfora, simples e funcional, e bem desenvolvida ao longo dos diálogos (“Você me vê?”, pergunta a amiga).
Ao final, All the Colours of the World Are Between Black & White ultrapassa a armadilha de transformar o amor romântico em objetivo final, e de limitar a homoafetividade ao único conflito dos protagonistas. Há uma descrição palpável da sociedade pobre, condenada à malandragem, aos empréstimos, aos negócios escusos. As pessoas se viram como podem, e parte da revolta nas ruas nasce de uma injustiça social mais profunda. Como pregar a igualdade num lugar onde os cidadãos são estimulados a se voltar uns contra os outros?
Além disso, a fábula não se encerra no final feliz da concretização romântica, e sim no início de um processo de autoaceitação em meio adverso. Bambino conquista a si mesmo, ao invés de conseguir um namorado. O mesmo vale para a amiga, para Bawa. Evita-se o otimismo mágico, quando todos os problemas desaparecem para que os protagonistas possam sonhar juntos. O cineasta acredita em transformações possíveis, pequenas, calcadas no real. O sonho jamais se impõe sobre a realidade, mas ajusta-se a ela, timidamente.
Em conclusão, o projeto propõe uma belíssima política dos afetos, uma ideia de reconstrução da comunidade baseada em pequenos avanços (vide as negociações no casamento de uma personagem). A exemplo do título, o mundo vive entre estes extremos da luz, da cor, do real. Tudo o que resta aos protagonistas precisa se encontrar entre estas duas pontas — impossível pensar em ir além. Numa sociedade desigual e opressora, onde a homossexualidade constitui um crime, Apalowo imagina uma câmera capaz de revelar amores e ensinar as pessoas a olharem (às vezes, para si mesmas).