Atmosfera (2023)

Psicose, edição Covid

título original (ano)
Atmosfera (2023)
país
Brasil
gênero
Drama, Suspense
duração
90 minutos
direção
Paulo Caldas
elenco
João Miguel, Milhem Cortaz, Zezita Matos, Peter Ketnath, Luka Omoto, Magda Figueiredo
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Um caseiro vive isolado na chácara dos patrões, que estabeleceram residência na Alemanha e não retornam há anos ao terreno do interior de São Paulo. Ele tem como única companhia a mãe idosa, com quem compartilha a paixão pela poesia. Edmundo do Pajeú (João Miguel) e Severina do Pajeú (Zezita Matos) formam uma dupla indissociável, do tipo que se provoca com palavras e rimas, enquanto demonstra evidente carinho um pelo outro. Afinal, não possuem outra vida social para além deste convívio familiar diário.

No entanto, o diretor Paulo Caldas sublinha, desde o princípio, a existência de alguma estranheza no cotidiano do rapaz. Ele está tenso quando fala com os patrões por chamada de vídeo. Começa a escutar estranhos ruídos de animais pela noite, embora não identifique a origem exata desta perturbação. Testemunha o disparo do alarme na casa central, local que não costuma frequentar, e mesmo assim, evita investigar a situação atípica. O homem vive com medo, treme as mãos ao pegar uma escova de dentes, espia janelas e portas.

Percebe-se que o autor abraça a proposta de uma gradação rumo à loucura, revelando com parcimônia os detalhes do que realmente ocorreu entre mãe e filho. Uma dupla de policiais antinaturalistas (Milhem Cortaz fica circulando em torno de Edmundo) aparece para acusá-lo de ocultação de cadáver. Mas quem morreu? Em que circunstâncias? A mãe, ausente nas imagens, teria falecido? Por que o caseiro não esclarece a situação? Atmosfera parte do drama para se transformar, rapidamente, num suspense.

Tudo pode ser um pesadelo do qual o poeta acordará a qualquer momento. E tanto faz — o roteiro não se importa de fato com sua saúde mental, com a morte da mãe, com a chegada da polícia, com a poesia do artista.

O problema se encontra nas ferramentas utilizadas para desenvolver o mistério, construir os personagens e revelar os segredos. Em primeiro lugar, a conversa com a mãe ausente desperta estranhezas óbvias pelas escolhas de decupagem e montagem. Vemos o rosto de Edmundo interagindo com a mãe, cuja imagem permanece oculta, fora de quadro. Portanto, escutamos somente a sua voz projetadas sobre o rosto do filho. A mulher não existiria? Nosso protagonista está louco? Inventou a existência da mãe, ou se recusa a aceitar a sua morte?

As conexões com o clássico Psicose se tornam evidentes. A ideia de um homem isolado, numa relação de codependência com a mãe, mantendo o corpo ao seu lado e interagindo com a falecida provém diretamente de Hitchcock, embora o Norman Bates brasileiro não possua vítimas a quem atacar no banheiro. Pelo contrário, é ele quem passa a ser assombrado pela figura de um demônio multiforme, desdobrado em seis personagens vividos, num misto de seriedade e humor, por Milhem Cortaz. Devemos rir ou levar a sério cada aparição deste antagonista?

Em segundo lugar, a estrutura de progressão implicaria iniciar em tom mínimo, plantar indícios aos poucos para, em seguida, vê-los crescer. Ora, Edmundo se porta de modo estranhíssimo desde a abertura, de modo que sua descida à loucura soa mais como uma repetição do que aprofundamento. Ele grita, chora, enterra objetos, desenterra objetos. Cobre o corpo, cobre ainda mais o corpo. Nota-se pouca evolução em termos de culpa, delírio, compreensão dos fatos, dissimulação ou aceitação. 

A montagem associa numa chave pouco elucidativa o que seria da ordem do real ou da ilusão, ou o que teria acontecido antes e depois. Para um suspense inteiramente baseado em percepções, incomoda a utilização frágil do tempo (os dias do luto, o processo desde a morte até o desfecho) e do espaço (nunca passeamos pela casa do herói, pelo terreno, pelo limite com as propriedades ao redor. Paira uma incômoda sensação de aleatoriedade, como se qualquer acontecimento pudesse irromper em cena, sem provocar consequências efetivas na trama ou na trajetória de Edmundo. O desfecho sublinha este fator, assim como a discussão pseudofilosófica na Alemanha, a respeito do valor da poesia popular.

Em terceiro lugar, e talvez o mais importante de todos, provenha desta metáfora da Covid que não ousa dizer seu nome, nem explorá-la enquanto fenômeno social ou político. A doença que surge de lugar algum e promove a morte das pessoas rapidamente, com forte teor de contágio, estabelece conexão direta com a pandemia de coronavírus. No entanto, Caldas oculta as circunstâncias da morte (algo estranho, para um filme que gira inteiramente em torno do falecimento) e as menções ao vírus.

Ele oferece, assim, a compreensão vasta e genérica de um universo distópico. Mas esta “doença misteriosa” aconteceria fora dos limites da chácara? Aos vizinhos? Como faz falta compreender a inserção de Edmundo numa comunidade local, para além da insistente presença da rádio de Santana do Parnaíba! A máscara portada pelo filho, mais apropriada à ficção científica do que às medidas naturalistas contra a Covid, sugere algo ainda mais perigoso, mais letal. No entanto, dada a ausência de consequências para além da mulher idosa, desconhecemos a efetividade desta sugestão.

Em Atmosfera, tudo pode ser um sonho, um delírio, um pesadelo do qual o poeta acordará a qualquer momento. E tanto faz — o roteiro não se importa de fato com sua saúde mental, com a morte da mãe, com a chegada da polícia, com a poesia do artista. Ele tampouco assume a responsabilidade ética e moral evidente de relatar mortes por Covid, pouco após o término da pandemia, na chave espetacular e próxima da comédia (graças, novamente, aos personagens fantasmáticos de Cortaz). 

A partida de Severina soa como um teatro absurdo, controlado por um homem insano. Há vírus, ou não? Alguém chegará, ou não? Edmundo será responsabilizado? A equipe não sabe ao certo onde pretende levar esta fábula, nem quais conclusões retirar do caso excepcional do homem isolado. Por isso, a narrativa gira em falso, repetindo-se sem evoluir. O projeto não parecia maduro o bastante para as filmagens, nem para o corte final apresentado aos espectadores da Mostra de São Paulo. É curiosa a sensação de assistir a um filme com problemas de concepção e finalização, no qual o forte potencial das ideias não compensa os desarranjos da realização.

Atmosfera (2023)
4
Nota 4/10

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