Mambar Pierrette (2023)

O lamento de Camarões

título original (ano)
Mambar Pierrette (2023)
país
Bélgica, Camarões
gênero
Drama
duração
93 minutos
direção
Rosine Mbakam
elenco
Pierrette Aboheu, Karelle Kenmogne, Cécile Tchana, Fabrice Ndjeuthat
visto em
Mostra de São Paulo 2023

“Olha a que estou reduzido! Pobre de mim!”, dispara um dançarino, trabalhando como palhaço pelas ruas de Douala, em Camarões. “Eu não tenho sorte. Não aguento mais. Não sei o que fazer”, comenta Mambar Pierrette, costureira do vilarejo, falando sozinha, em voz alta. “Que país!”, ela mesma se queixa adiante, face à precariedade material dos vizinhos, amigos e familiares. “Deus vai me ajudar”, ela afirma sem real convicção a uma amiga, na igreja.

Mambar Pierrette pode ser considerada uma crônica desesperançosa da vida em Camarões. A diretora Rosine Mbakam se volta sobretudo às mulheres, provedoras do lar, precisando cuidar sozinhas dos filhos, porque os homens as abandonam e se recusam a contribuir à criação dos pequenos. Por esta razão, a costureira é descrita, na sequência inicial, enquanto trabalhadora incansável. Ela cuida da mãe idosa, dá atenção e carinho ao filho, cozinha, prepara novas roupas. Trata-se de uma mulher de ação.

Adepta do realismo social, a cineasta valoriza procedimentos e esforços, salientando a prática real pelas mãos da heroína. Isso implica na decisão de consagrar longas cenas à costura de mangas e zíperes; acompanhar o preparo de uma refeição, ingrediente por ingrediente; e retirar a água de casa durante uma inundação, balde por balde. A câmera permanece junto a estas pessoas em momentos difíceis, em registro de cumplicidade e solidariedade. Não resta dúvida quanto ao apoio total da direção a Mambar e às demais mulheres.

A estrutura privilegia a capacidade de se reerguer após cada provação, precisando solucionar os conflitos com a mesma facilidade que os cria. No papel principal, Pierrette Aboheu Njeuthat oferece uma atuação excelente.

Este posicionamento solidário se traduz numa espécie de parceria entre direção e personagens. A câmera nunca invade a intimidade em close-ups próximos demais, mas também evita abrir demais os enquadramentos, perdendo a heroína no meio da multidão. Imperam os planos de conjunto, as imagens cuidadosas da protagonista à máquina, ou sentada num bar com a melhor amiga. Quando Mambar cuida da mãe, a câmera permanece à batente da porta, hesitando entre entrar ou esperar no corredor. Na hora de uma agressão nas ruas, afasta-se e se posiciona na outra calçada, evitando espetacularizar a dor desta mulher em choros ou expressões faciais fortes.

Em outras palavras, nota-se um cuidado precioso para que a miséria se torne componente social e político, mas nunca uma diversão ou catarse para o espectador. Jamais somos convidados a chorar diante das desventuras em série que afligem a heroína e sua família. A costureira tampouco se apieda sobre a própria situação. Face ao abandono do lar, decide processar o marido na justiça, contrariando o machismo local. Diante da casa e ateliê inundados, arregaça as mangas e começa a limpeza. Esta não parece ser a primeira, nem a última vez que a personagem enfrenta dilemas semelhantes.

O roteiro corre o risco de encadear uma quantidade exagerada de problemas, como se buscasse convencer o espectador da dura vida em Camarões através do acúmulo de tragédias. Mambar é assaltada, perdendo todas as suas economias. Na mesma noite, a casa é inundada pela chuva torrencial. Na manhã seguinte, chega a vez de recuperar os objetos molhados do ateliê. Na hora de retomar o trabalho, a máquina de costura sumiu. E a eletricidade foi cortada por falta de pagamento. 

Pelo menos, estes obstáculos são superados com rapidez, evitando pesar de maneira definitiva na trajetória de Mambar. A estrutura do drama privilegia a capacidade de se reerguer após cada provação, precisando solucionar os conflitos com a mesma facilidade que os cria. No papel principal, Pierrette Aboheu Njeuthat oferece uma atuação excelente, porque minimalista, um tanto séria e pragmática, e fugindo às armadilhas da chantagem emocional. Ela se torna um corpo presente, um olhar firme e seguro, que contesta clientes e disciplina os filhos com a imponência de quem jamais se coloca em dúvida.

Em termos de produção, o drama possui algumas deficiências claras, sobretudo no que diz respeito à direção de fotografia. Na incapacidade de iluminar ruas para as cenas externas, a diretora de fotografia Fiona Braillon deixa que os corpos praticamente se percam na escuridão dos becos e vielas. Voluntária ou não, esta escolha permite refletir a insegurança das mulheres (muito mais propensas a ataques em ruas sem postes de luz) e esconder o emocional impacto do assalto. A inundação à noite e a conversa no bar também contam um trabalho bastante simples em baixas luzes.

Entretanto, os recursos jamais prejudicam o resultado, que prioriza a luz natural das cenas diurnas, e demonstra bela capacidade de explorar poeticamente os espaços. Chamam atenção os enquadramentos com a manequim branca e esguia, muito diferente das mulheres locais; e a viela repleta de água por onde os habitantes atravessam aos saltos. Nota-se um controle precioso de mise en scène na excelente interação com o dançarino-palhaço, que vem ao ateliê retirar sua máscara, literalmente, e expor a tristeza à protagonista.

Mambar Pierrette impressiona pela capacidade orgânica de conjugar o machismo, o peso da religião, a precariedade econômica, as relações amorosas, maternas e filiais. Compreende-se que afetem umas às outras, e que não possam ser percebidas isoladamente. O drama ainda toma a curiosa liberdade de ocultar em imagens o marido infiel, para que o espectador nem o deteste, nem se identifique com ele. Não se trata de um homem específico, e sim do marido enquanto figura canônica de uma sociedade patriarcal. Há olhos apenas para as mulheres, num mundo inteiro delas, na posição de rainhas solitárias de um país abandonado — uma visão bela e melancólica do atual estado das coisas.

Mambar Pierrette (2023)
7
Nota 7/10

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