Bom Dia à Linguagem (2023)

Separar autor e obra

título original (ano)
Bonjour la Langue (2023)
país
França
gênero
Drama
duração
80 minutos
direção
Paul Vecchiali
elenco
Paul Vecchiali, Pascal Cervo, Julien Lucq
visto em
Mostra de São Paulo 2023

A exibição deste drama na 47ª Mostra de São Paulo gerou uma atenção sem precedentes da crítica de cinema. Apesar do horário ingrato da sessão (9h15 da manhã), estavam presentes os maiores nomes da crítica paulistana, além daqueles de passagem pela cidade, interessados em descobrir o último projeto dirigido pelo cineasta francês Paul Vecchiali, falecido em janeiro de 2023. Trata-se de um caso em que os afetos extrafilme influenciam, de maneira direta, na apreciação do resultado.

Isso porque o autor sempre foi apreciado enquanto indivíduo e artista, tanto pelos posicionamentos políticos quanto pela maneira muito simples e direta de se colocar em cena, discutindo os temas sociais que lhe interessam. Contribui o fato de ter passado pela revista Cahiers du Cinéma, núcleo do pensamento autoral ocidental, e ter trabalhado com Jacques Demy e Agnès Varda, além de ter coproduzido o clássico Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman.

Em outras palavras, o afeto pelo cineasta se transmite de maneira direta ao filme-testamento, o último de sua carreira, onde ele interpreta o papel principal de um artista que discute seu legado concreto e simbólico (envolvendo a relação com o filho e as obras produzidas ao longo de décadas). Gostar de Vecchiali se converte no gesto de amar os filmes de Vecchiali e, mais especificamente, aquele destinado a representar a epígrafe de uma trajetória exemplar.

Esta é uma forma de arte atualíssima enquanto dispositivo (a câmera digital ágil, as propostas simples e fáceis de edição, a produção baratíssima), apesar de antiquada enquanto visão de mundo e ideologia artística.

No entanto, seria equivocado deixar que tamanho carinho pré-filme contamine por completo a apreciação da obra. Bom Dia à Linguagem está diretamente ligado à persona e à marca de Vecchiali, mas não pode se confundir com o cineasta. O autor produz uma obra, mas não é a sua obra — pelo menos, não em uma forma de cinema coletivo, realizado com o suporte de dezenas de profissionais. Algo diferente poderia ser dito dos pintores da pop art, a exemplo de Andy Warhol, que criava em contextos e linguagens muito diferentes. No cinema, esta distinção se torna fundamental.

Logo, existe o filme. A narrativa se divide em apenas três cenas, dedicadas a dois únicos personagens que ocupam a integralidade da trama: o pai (interpretado pelo próprio cineasta) e o filho (seu colaborador habitual, Pascal Cervo). Este último chega à casa do pai de surpresa, após seis anos de silêncio entre eles. Afirma ter agido por impulso, embora traga uma mala atrás de si. Já o pai declara que não o esperava, para depois confessar que o aguardava, sim — há anos, aliás. 

Conforme sugere o título, a dinâmica depende inteiramente das falas de um e de outro. O conteúdo teria sido “inteiramente improvisado” pelos atores, declaram os letreiros iniciais. Esta impressão se sustenta: eles se insultam, se elogiam, se ofendem, riem juntos. Discorrem a respeito de temas graves, e outros de menor importância. Lembram a mãe e a filha, mortas num acidente de carro; revelam lembranças de sonambulismos e outras passagens esquecidas pelo senhor idosos. O teor das falas se resume a uma longa e ininterrupta digressão.

Infelizmente, as imagens constituem mero suporte para o registro da verborragia familiar. Nenhum enquadramento, utilização de luz, de profundidade de campo, fornece qualquer ambição ou interesse em si. Os rostos estão centralizados no quadro (ou colocados em terços simétricos, na cena do almoço), enquanto a conversa se sucede num plano e contraplano protocolar, pouco inspirado. Percebe-se o trabalho com uma câmera digital leve, e também uma textura de baixa qualidade.

Vecchiali aposta no valor humano das trocas, e nesta forma de cinema ágil e improvisado, acima de pretensões estéticas ou arroubos de linguagem. Contenta-se com uma base teatral, onde os personagens nunca interagem com o cenário, embora ocupem o palco na integralidade da experiência. Nunca se trabalha com o espaço fora de quadro, os sons externos, a sugestão de algum elemento que possa acontecer ou chegar. O primeiro close-up surge por volta da metade do longa-metragem, e o primeiro som dissociado de sua imagem referente aparece na proximidade do terço final.

O mundo se resume aos afetos e desafetos desta família burguesa, privilegiada, e um tanto amarga. Pai e filho debatem sobre quem teria abandonado quem; qual dos dois rejeitou ou culpabilizou o outro; quem estaria mais próximo da mãe ou da irmã. “O que importa para você hoje?”. “Que você esteja aqui”. “Qual é o centro da sua vida?”. “Você”. Discutem o fato de nunca terem gostado da casa espaçosa; listam suas sobremesas preferidas; discutem os melhores filmes de Ford; promovem um jogral utilizando títulos de Jean-Luc Godard.

A sociedade ao redor inexiste. Ambos os personagens preocupam-se única e exclusivamente consigo mesmos. Ninguém possui obrigações, objetivos, pressões, prazos. Podem permanecer na casa e nos gramados o quanto quiserem, almoçar no restaurante que der vontade, e discutir quando lhes convier. Estão sozinhos na entrada da propriedade, no restaurante onde são os únicos clientes, e no gramado particular. Os raros flashbacks, apresentando pai e filho correndo alegremente na grama, ou a revelação inesperada do terço final, aproximam bastante o resultado de um folhetim sentimental, do tipo que coincide drama com doenças, segredos familiares e reconciliações (literalmente) crepusculares.

Trata-se de um cinema repleto de carinhos, inclusive históricos. Ele remete à história do cineasta e àquela da Nouvelle Vague (movimento que também se iniciou, vale lembrar, na representação de relacionamentos burgueses), além de uma tradição saudosa, sempre bastante masculina e umbiguista. Lembra muito o clichê cristalizado popularmente de um cinema francês baseado em diálogos filosóficos e pessoais, de aparência intelectual, e apartados da contemporaneidade. 

Em consequência, pode-se falar em uma forma de arte atualíssima enquanto dispositivo (a câmera digital ágil, as propostas simples e fáceis de edição, a produção baratíssima), apesar de antiquada enquanto visão de mundo e ideologia artística. Os filmes onde o autor constitui meio e finalidade, voltados somente aos afetos destes mesmos indivíduos, e incapazes de enxergar sua existência num contexto espaço-temporal, transmitem uma forma de alienação política dificilmente apreciável em 2023. 

Vecchiali honra a sua trajetória, porém encerra o percurso com um projeto anacrônico — algo que não constituiria nenhum problema em si. É tão absurdo exigir uma consistência autoral dos cineastas a vida inteira quanto esperar que produzam unicamente obras-primas. 

Bom Dia à Linguagem (2023)
4
Nota 4/10

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