Casa de Antiguidades (2020)

Brasil, terra de selvagens

título original (ano)
Casa de Antiguidades (2020)
país
Brasil, França
gênero
Drama
duração
87 minutos
direção
João Paulo Miranda Maria
elenco
Antônio Pitanga, Ana Flávia Cavalcanti, Sam Louwyck, Aline Marta Maia, Gilda Nomacce
visto em
Cinemas

Uma das leituras mais férteis de Casa de Antiguidades (2020) se encontra na dimensão simbólica do projeto. O drama se inicia com a imagem do buraco na luva de um trabalhador. No entanto, o objeto metálico e prateado, filmado em plano extremamente próximo, remete à vestimenta de um astronauta. A câmera se aproxima do rasgo por onde passa uma estranha ventania, como se algo sinistro ocorresse nessa atmosfera particular.

Outros fenômenos semelhantes ocupam a narrativa. Panteras fantasmáticas invadem as casas desta colônia austríaca, no sul do país, enquanto chefes de empresas fazem discursos separatistas em alemão, diante de um grotesco painel sugerindo os Alpes, pintados ao fundo do palco. Cadáveres aparecem aqui e acolá; tiros são disparados a esmo. Apesar da aparência de calmaria e inércia, existe uma guerra silenciosa travada por forças indeterminadas.

Neste sentido, o drama oferece um verdadeiro banquete de estímulos ao espectador. É difícil saber em qual ano se situa a jornada, durante quanto tempo ocorre, e em especial, se os acontecimentos pertencem a uma aventura naturalista, ou a um percurso fabular, próximo do sonho ou pesadelo. O contexto de ataques sucessivos a Cristovam (Antônio Pitanga), operário de uma fábrica de leite, se intensificam ao limite do impensável. 

Assim, o cinema se encarrega de concretizar aquilo que cabe ao domínio do improvável, do moralmente perturbador. A gradação das violências contra o herói (à sua casa, ao cachorro, ao corpo, à liberdade de transitar pelas ruas) escancara o racismo do sul do país de uma maneira assumidamente exagerada, monotemática. O diretor João Paulo Miranda Maria não permite ao espectador enxergar qualquer outro aspecto para além desta angustiante perseguição em plena luz do dia, a céu aberto.

O espectador deve sair da sessão com mais perguntas do que respostas: o filme convida ao prazer de se perder neste ambiente, ao invés de se encontrar.

Justamente por se focar com tanta atenção aos signos e símbolos, o longa-metragem despreza alguns elementos importantes de contextualização. Parece ser importante à evolução deste homem o local de onde vem, os motivos do deslocamento, o encontro com a casa repleta de objetos e a decisão de habitá-la. A sinopse apresenta alguns fatos com uma clareza jamais transmitida no resultado, posto que a mise en scène minimiza as relações de causa de consequência para priorizar o impacto destas na psique do personagem central.

Este foi um dos fatores criticados pela imprensa durante sua primeira exibição, e que talvez tenham prejudicado a fruição: essas figuras parecem flutuar pelo cenário, sem origem nem objetivos precisos, surgindo em frente a Critovam quando convém à trama — assim como fazem os lobos maus diante das chapeuzinhos vermelhos. Há uma noção de exemplaridade, e mesmo de artificialidade, sobretudo nas aparições e partidas do grupo de crianças com uma arma na mão.

Entretanto, conforme o espectador se distancia de uma leitura cartesiana e passa a aproveitar as ambiguidades, metáforas e sugestões, a experiência se torna mais potente. O diretor oculta a conexão entre este homem negro e idoso e uma jovem negra da mesma região; esconde o conservadorismo do operário até uma sequência importante, assim como minimiza as motivações deste em promover um enterro. O espectador deve sair da sessão com mais perguntas do que respostas: o filme convida ao prazer de se perder neste ambiente, ao invés de se encontrar.

Antônio Pitanga oferece uma atuação forte neste papel, em chave oposta do que se esperaria dele. Ícone de um cinema brasileiro vanguardista e messiânico, amante das catarses e do enfrentamento frontal da política, agora ele encarna um sujeito de olhos marejados e corpo feroz, porém quieto. Cristovam é um tipo resiliente, que tolera sem protestos uma série de provocações e ameaças. O descontentamento com os agressores se transmite apenas na expressão carrancuda do homem que se recusa em partir.

A demonstração da violência física e psicológica levanta outro receio. Alguns projetos, na ânsia de demonstrar o racismo, acabam por transformar os heróis negros em vítimas de uma tortura incessante e espetacular (caso representado sobretudo pela série norte-americana Them). A dor de sujeitos negros se converte em diversão para as massas, em especial brancas, o que soa como uma exploração racista às avessas. Ora, é possível e necessário representar a intolerância sem oferecer um show de torturas.

Felizmente, Casa de Antiguidades toma as precauções de permitir ao trabalhador reagir às investidas destes homens e mulheres brancos, sulistas e racistas. Seu plano de reação, seja ele refletido ou espontâneo, também ocorre num terreno metafórico: é preciso confrontar símbolos com novos símbolos. Por isso, o uso de máscaras e lanças de caboclos resulta numa resposta mais apropriada do que se amparar de uma selvageria idêntica àquela dos moradores locais. Além disso, o filme jamais confunde a violência do opressor com a reação do oprimido.

Neste sentido, a jornada sucinta em duração e número de personagens desenvolve a fúria de Cristovam até um estopim evidente. O final se abre a múltiplas interpretações, até porque as feridas sociais despertadas neste microcosmo do conservadorismo estão longe de ser fechadas. Paira a aparência de um Brasil raivoso, no oposto da cordialidade detectada por nossos antropólogos, descobrindo-se forte pelo uso de armas, pelos slogans guerreiros de combate às diferenças. Essa nação miscigenada graças à violência começa a se orgulhar do preconceito em relação ao outro.

Restam na cabeça as fortes imagens do corpo de Antônio Pitanga, imperturbável, muito firme ao segurar uma lança, um berrante ou fazer sexo. Este sujeito está longe de uma idealização: ele próprio revelará suas falhas conservadoras, fruto da educação bruta e religiosa, quando confrontado às mulheres. Os homens não sabem mais conversar, não sabem mais escutar, e desejam eliminar os comportamentos diferentes do seu. Por isso, a metáfora do separatismo do sul em relação ao resto do país resume de maneira tão apropriada o Brasil sob Bolsonaro.

Além disso, sobressaem-se as imagens de animais ferozes, irracionais, atacando e sendo atacados de maneira inconsequente. Bois são abatidos num espetáculo de força, diante de uma “plateia” de trabalhadores; panteras invadem os lares e ameaçam os ocupantes; cachorros se tornam alvo de tiros e motores de chantagem. Casa de Antiguidades observa no homem contemporâneo uma fera selvagem, contente com sua própria ignorância, e disposta a trocar a cultura pelas armas. A solução não poderia escapar à tragédia.

Casa de Antiguidades (2020)
8
Nota 8/10

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