Casa Susanna (2022)

Questão de afeto

título original (ano)
Casa Susanna (2022)
país
França, EUA
gênero
Documentário
duração
97 minutos
direção
Sébastien Lifshitz
visto em
Festival de Toronto 2022

Há um abismo separando tipos de filmes muito diferentes, todos conhecidos como documentários. Parte considerável dos criadores acredita que a função destes projetos seria contar uma história, transmitir a mensagem de algo que acontece, ou já aconteceu. Muitos cineastas ainda captam várias entrevistas, juntam o máximo de material de arquivo possível, e depois estimam que o formato, o roteiro, o ritmo e o discurso começa na montagem. O documentário seria um trabalho de conversa com especialistas, e então, de edição — em muitos casos, o cineasta sequer efetua as entrevistas, encomendadas a terceiros.

Alguns títulos preciosos já foram criados a partir desta estrutura, mas, em geral, o resultado soa limitado, convencional. Em alguns filmes, transparece a aparência de pouco investimento num processo de criação, no sentido estrito do termo. Em muitos casos, resulta em algo próximo da reportagem jornalística e/ou televisiva, para a qual o conteúdo se posiciona acima da forma, e quaisquer problemas e linguagem, som ou captação são desculpados pela “importância do tema”. O cinema, humilde, se coloca a serviço do mundo, como se fosse inferior ao real, contentando-se com a condição de servo fiel, pouco intrusivo.

Felizmente, ainda existem documentaristas como Sébastien Lifshitz, para quem o documentário representa, em primeiro lugar, um espaço de criação. Em suas produções, a metáfora, a poesia e aquilo que a direção obtém por conta própria desempenham um papel fundamental. Aqui, as entrevistas demonstram um cuidado de enquadramento, som e luzes impressionante, destinado a formar um conjunto coeso com as fotografias e vídeos caseiros de antigamente. Nota-se uma preocupação estética fundamental: a linguagem colabora com o real, de maneira horizontalizada, ao invés de se render a ele.

Resta uma coletânea de subjetividades retratada de maneira belíssima, tanto pela forma quanto pelo conteúdo.

Casa Susanna representa um exemplo belíssimo deste espaço vazio, que resta a ocupar, entre o documentário abstrato, de desconstrução, e o filme clássico-narrativo, verborrágico e repleto de explicações fatuais. Neste caso, o diretor se concentra no lar conhecido por abrigar travestis e transexuais nos Estados Unidos das décadas de 1950 e 1960. Homens vestidos de mulheres frequentavam o espaço isolado, acompanhados de suas esposas, sentindo-se seguros e sem o risco de represália. Nenhum deles se considerava, então, homossexual, tampouco transexual. 

O filme se encontra com pessoas cujas relações com este espaço variam em grau e natureza. São convidados o filho de Susanna (a anfitriã da época), assim como a filha de um reputado engenheiro cujo prazer de se vestir em mulher se converte em obsessão. Em paralelo, conversa-se com uma senhora idosa, transexual, que costumava frequentar esta “colônia de travestis”, como a chamam, e outra mulher transexual que preferiu manter distância do estabelecimento. Assim, promove o encontro entre olhares diferentes, movidos por lembranças diretas ou indiretas, evitando que as vozes produzam um discurso único.

As conversas não ocorrem em estúdio, nem na casa das pessoas, diante da tradicional estante de livros. Pelo contrário, o documentário propõe que se encontrem e visitem o espaço fechado que, um dia, serviu de palco à liberação sexual de tantos homens e mulheres. Não existe pressão para que sua contribuição se converta em conteúdo, informação, dados, revelações: na maior parte das cenas, estas pessoas sorriem discretamente em direção à casa, hesitam enquanto pensam numa lembrança, ou questionam-se diante de uma foto antiga: “Essa aqui era eu? Eu tinha essa peruca? Acho que não era eu”

O espectador não deve demorar a perceber que as intenções de Lifshitz se encontram muito além de “contar às pessoas uma história que talvez não conheçam”. Há pouca descrição verbal a respeito de quando a Casa foi fundada, quantas pessoas foram acolhidas, etc. O interesse se encontra no papel que estes encontros surtiram nos frequentadores, e como estes se transformaram desde então. Em outras palavras, o humanismo supera o aspecto fatual. São citadas pessoas queridas, desconhecidas. Fala-se em nome de quem não está mais presente, com carinho, ternura e, às vezes, uma parcela de ressentimento.

O cinema tem oferecido uma quantidade crescente (mas ainda pequena) de histórias a respeito de indivíduos transexuais, muitas delas focadas na revelação de sua identidade sexual, na aceitação de familiares, nas transformações corporais da transição. O número de projetos diminui bastante quando se aborda a velhice trans, especialmente em formato documentário, sobretudo em conversas diretas com estes indivíduos. A quantia cai para próxima de zero quando a perspectiva se concentra nos sonhos, saudades, desejos, visões de mundo. 

Em outras palavras, Casa Susanna evita transformar estes personagens em porta-vozes de uma causa, ou em figuras acessórias para se chegar a um discurso preciso. O diretor possui escuta atenta ao que tenham a dizer, às histórias, aos dilemas narrados. Ele não impõe nenhum discurso através destas pessoas, nem pinça as falas “mais fortes”, ou mais explicitamente relacionadas à casa-título. Os homens e mulheres estão livres para discorrer a respeito do que lembrem, numa livre associação de ideias tão respeitosa quanto atenta ao outro. 

À medida que a narrativa avança, o sentimento toma conta das imagens, auxiliado por uma trilha sonora bela e discreta. Os depoimentos possuem distanciamento suficiente para relembrar conquistas e derrotas, sem a angústia comum às feridas recentes. Em contrapartida, relembram amigos, episódios ou ex-namorados com um saudosismo ímpar. Ao invés de sublinhar a existência destes indivíduos por sua singularidade, de maneira fetichista (“Olha que curiosas estas pessoas, tão diferentes de nós!”), o projeto apela àquilo que os personagens tenham de comum com qualquer espectador. 

Em paralelo, investiga discretamente a maneira como a mídia da época tratava a população travesti e transexual; tenta compreender qual ideal de mulheres se refletia nos travestimentos da casa Susanna (em especial, a figura da esposa recatada, de meia-idade, ao invés de uma feminilidade sensual) e o teor de preconceito internalizado, fazendo com que os membros aceitassem apenas pessoas que se identificassem como heterossexuais e cisgênero. Vestir-se de mulher, especialmente na frente da esposa, era coisa de macho, e os integrantes queriam fugir à associação com o imaginário de promiscuidade dos gays das grandes cidades.

Resta uma coletânea de subjetividades retratada de maneira belíssima, tanto pela forma quanto pelo conteúdo. O diretor deve ter utilizado pelo menos duas câmeras simultâneas para evitar o plano e contraplano e permitir que algumas conversas se revezem com a silhueta dos amigos de costas, coroados pelo pôr do sol, ou pelos silêncios de duas mulheres trans idosas, encostando na madeira da casa abandonada. Quem dera todos os documentários tivessem um cuidado estético, político e humano semelhante a este aqui.

Casa Susanna (2022)
9
Nota 9/10

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