Escolha ou Morra (2022)

Um jogo controla o mundo

título original (ano)
Choose or Die (2022)
país
Reino Unido
Gênero
Terror, Suspense, Fantasia
duração
84 minutos
direção
Toby Meakins
elenco
Iola Evans, Asa Butterfield, Robert Englund, Angela Griffin, Ryan Gage, Eddie Marsan, Kate Fleewood, Pete MacHale, Caroline Loncq, Ioanna Kimbook
visto em
Netflix

Quando chegou ao cinema, a saga Jogos Mortais (2004-2021) ofereceu uma premissa inédita para a época: pessoas infratoras ou moralmente questionáveis eram levadas a se redimir de seus pecados ao aplicarem práticas de tortura em si mesmas e nos outros. O vilão era movido por um propósito moralista de teor sádico, visando despertar nas vítimas a atenção aos erros cometidos. O motor das mortes era unicamente humano, apesar das traquitanas letais que brotavam em esconderijos do dia para a noite.

O aspecto punitivo e reparatório sempre representou uma desculpa simples para o mecanismo de mortes perversas. Os personagens ganhavam construção psicológica ínfima, afinal, seriam sacrificados ao prazer do espectador poucos minutos depois. Agora, Escolha ou Morra (2022) se candidata ao posto de nova saga de terror a partir de uma nova lógica de assassinatos: um videogame interfere na realidade e propõe ao jogador aplicar punições a terceiros: prefere cortar a orelha da esposa ou a língua do filho? 

Este motor de conflito possui potencial: os participantes estão isentos de risco à própria vida, sofrendo o trauma de serem responsáveis pela morte alheia. Logicamente, o game Curs>r jamais oferece a possibilidade de se vingar de desafetos, oferecendo punições somente a pessoas queridas ou a anônimos. Uma vez inscrito, por acaso e sem aviso, o jogador será impedido de abandonar o jogo: ele precisa seguir adiante. Em consequência, os pais começam pular da janela e jovens garçonetes mascam pedaços de vidro.

O mecanismo desperta inúmeras dúvidas quanto ao seu funcionamento: quem o controla? Por que motivo? De que modo um game dos anos 1980 foi esquecido, e por meio de quais forças poderia levar um indivíduo a devorar o próprio braço? O que aconteceria caso investigadores e hackers poderosos interviessem nos códigos de programação? O que ocorre ao jogador que tentar driblar as regras, encerrar o jogo mais cedo, ou se recusar a participar? Ele poderia subverter o mecanismo para dirigi-lo a um adversário? Esta força poderia ser utilizada em massa, para fins de controle social? Afinal, o roteiro de Simon Allen, Toby Meakins e Matthew James Wilkinson concebe um super vilão de poderes consideráveis.

Inicialmente, o longa-metragem ignora todas estas questões. O jogo apenas controla o mundo, ponto final. Contente-se com esta explicação, deixe de cobrar justificativas e desfrute da barbárie gratuita — as migalhas de lógica em Jogos Mortais cedem espaço a algo ainda mais fortuito. O raciocínio soa pobre, mero exploitation, porém dotado de uma sinceridade incomum aos produtos da indústria. “É isso que tenho a oferecer, e me orgulho de minhas falhas”, parece se exclamar este cinema B, a exemplo de tantos pequenos filmes ousados e tresloucados do cinema de baixo orçamento.

O roteiro apresenta dificuldades em desenvolver a origem dos personagens, suas motivações, os obstáculos no caminho, além do tempo e do espaço.

Em contrapartida, passado um momento inicial, o diretor Toby Meakins fornece uma explicação por trás do funcionamento do jogo. O suposto clímax da história se desenvolve de modo absurdo, até para os padrões de uma história de comprometimento mínimo com a verossimilhança. Entra em cena um vilão digno dos quadrinhos, uma mistura de cientista maluco com gênio do crime, verbalizando uma justificativa que não responde, de modo algum, às indagações acima. Esta cena confirma a limitação do projeto no que diz respeito à criação de adversários, como no caso de Lance (Ryan Gage), o traficante sádico.

Ora, sem uma base mínima de contexto e motivações, o conceito perde sua potência. Os heróis Kayla (Iola Evans) e Isaac (Asa Butterfield) possuem poucos afetos e desafetos, porque inexistem em sociedade: eles vivem reclusos em galpões vazios ou apartamentos silenciosos. Os dois demonstram um afeto mútuo incipiente, jamais concretizado. Em outras palavras, os adolescentes em questão têm pouco a perder, de modo que os efeitos nefastos do Curs>r provocam pouca tensão em ambos. Mesmo a mãe da garota, em estado grave no hospital, é abandonada pela mesma.

O fraco roteiro apresenta dificuldades em desenvolver elementos básicos de mise en scène: a origem dos personagens, suas motivações, os obstáculos no caminho, além do tempo e do espaço. Kayla e Isaac não possuem objetivos para o futuro, desejos particulares, nem metas a cumprir. A noção de uma sociedade empobrecida, sugerida na introdução, desaparece com rapidez: eles nunca sofrem as consequências dessa pretensa pobreza — a família à beira do despejo jamais é forçada a deixar o apartamento, e o garoto vivendo entre ratos leva dias tranquilos e despreocupados.

Devido a esse rascunho de texto, que certamente seria reprovado numa aula de introdução ao roteiro, é difícil compreender a participação de atores tão bons, ou em ascensão na indústria, para além do selo Netflix legitimando o projeto. Asa Butterfield tem pouco a fazer em cena, protagonizando uma sequência risível envolvendo fitas magnéticas. Eddie Marsan, um dos atores mais talentosos de sua geração, fornece o melhor trabalho de atuação do elenco, ainda que o personagem nunca se justifique no tempo (o que ocorre a Hal entre a cena de abertura e o desfecho?). 

O resultado remete aos primeiros longas-metragens produzidos pela Netflix, quando a empresa era levada pouco a sério devido a obras de gênero endinheiradas e fraquíssimas como Mudo (2018), Cargo (2018), TAU (2018) e Extinção (2018). Certamente, há artistas competentes envolvidos na empreitada que desperta questionamentos quanto ao seu processo criativo: este roteiro teria sido realmente desenvolvido ao longo de vários tratamentos, aprovado e desenvolvido por muitas pessoas antes de passar às filmagens? Ou seria um pequeno texto engavetado a princípio, e então autorizado por ser barato, por uma empresa que necessita produzir e lançar filmes no atacado?

Esteticamente, é difícil apontar alguma utilização memorável de luz, som ou montagem. A pós-produção insere inúmeros ruídos perturbadores pelo volume, ainda que desprovidos de desenvolvimento: trata-se do barulho pelo barulho, o incômodo pelo incômodo. Cenas de pretensa tensão, caso da piscina envolvendo o irmão mais novo, se perdem numa decupagem falha e montagem confusa. O melhor instante ocorre na luta contra o “chefão”, quando se maltrata o outro para afetar a si mesmo. Entretanto, o recurso surge tarde demais, sem surtir efeito duradouro.

Ao final, Escolha ou Morra possui a aparência de uma oportunidade desperdiçada por falta de empenho dos criadores em analisar as circunstâncias da premissa e as consequências possíveis sob uma perspectiva tanto naturalista quanto de terror. O conceito soa desenvolvido às pressas, filmado e concluído sem empenho. Ninguém ali dentro acredita estar concebendo um grande filme. Algumas obras ambiciosas erram seus alvos, porém miram em algo complexo. Este projeto nem sequer se dá ao trabalho de desenvolver a premissa até as últimas consequências.

Escolha ou Morra (2022)
2
Nota 2/10

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