Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem (2020)

O lindo amor dos outros

título original (ano)
Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem (2020)
país
Brasil
Gênero
Documentário
duração
84 minutos
direção
Natara Ney
Visto em
Cinemas

“Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”. Este documentário é marcado pelas pequenas frases românticas de Lúcia para Oswaldo, e vice-versa, entre os anos de 1952 e 1953. Viviam em estados diferentes, e escreviam-se com frequência, esperando o aguardado dia da união. Acabaram produzindo um total de 180 cartas encontradas pela diretora, Natara Ney, numa feira de antiguidades. Diversas pessoas leem as declarações de amor eterno e se comovem, ou suspiram com as confissões dos amantes de antigamente: “Que lindo isso, não?”

Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem (2020) depende intimamente deste sentimento saudosista a partir de uma história a dois, suposta pela diretora e por seus entrevistados, adquirindo um acréscimo de afeto a cada nova cena. Imagina-se que tenham se amado como ninguém mais, que tenham efetuado concessões importantes para viver juntos. Em voz off, a cineasta afirma, com um misto de tristeza e alegria, que se deleita com o percurso alheio por falta de um amor próprio a compartilhar.

Assim, o espectador se depara com um filme romântico, para além de um filme sobre o romantismo do casal em questão. A estética abraça sem meios-termos a idealização deste percurso repleto de lacunas, evocado por desconhecidos em terceira pessoa. As baladas sentimentais vangloriam os sentimentos duradouros; as vozes evocam a presença de cinemas destruídos, de cidades que se modificaram totalmente em 70 anos. A câmera busca as câmeras fotográficas antigas, os vídeos em preto e branco das mulheres da sociedade desfilando, as lembranças saudosas de um tempo querido que não volta mais.

Por um lado, a premissa cumpre o seu papel: o longa-metragem possui a aparência de uma caixinha de música, do tipo que contém uma bailarina rodopiante no interior, ou de um terno álbum de retratos que se estimava perdido, até ser encontrado por acaso durante a mudança. As imagens transbordam de afeto, de cuidado e atenção para com este casal, ausente nas cenas até o desfecho do longa-metragem. Mesmo a narração possui um teor etéreo, vaporoso. Este cinema do real abraça a estética do sonho.

Filma-se conforme se pensa: Ney oferece um filme-processo, na qual o espectador se converte em cúmplice da busca por Lúcia e Oswaldo.

Por outro lado, a retórica do querer amar (ou seja, ama-se o desejo de amar) domina o filme, deixando pouco espaço a construções de linguagem mais complexas. Embora trabalhe com conversas informais e amigáveis, seja nas ruas ou nas feiras, a câmera se mostra vacilante, indecisa. A textura digital de baixa qualidade transmite a aparência de um cinema caseiro (parcialmente justificada pelo intimismo do tema), enquanto a direção de fotografia teima em encontrar o foco, em determinar o enquadramento.

Poucas imagens possuem algum interesse estético em si mesmas, ou um cuidado particular com a construção de linguagem para além do aspecto referencial — as cenas servem como registro de algo que ocorreu, como provas do real e indícios de uma versão da História. Filma-se conforme se pensa: Ney oferece um filme-processo, na qual o espectador se converte em cúmplice da busca por Lúcia e Oswaldo, para receberem de volta as cartas escritas décadas atrás. A conclusão deste processo (a dupla será encontrada? Ainda está viva?) nunca é antecipada aos olhos do público. A autora pretende que a viagem valha tanto quanto a possível recompensa ao final.

Ela conta com pequenas informações de desconhecidos que já tiveram contato com a dupla idosa, além de porteiros de prédios e outras pessoas com pistas para esta caça ao tesouro. Quando faltam indícios fatuais e imagéticos para explicar os acontecimentos, a diretora entra em cena como narradora, justificando suas escolhas, avisando os próximos passos ou descrevendo cidades e acontecimentos. Seria importante que o cinema documental começasse a pensar sobre esta muleta cada vez mais frágil do diretor-personagem, utilizado sem moderação para suprir as falhas de significado da imagem e do som direto. 

Curiosamente, este “diário de uma busca” se apropria das cartas alheias sem demonstrar profundo interesse em seu conteúdo. É evidente que a cineasta tenha afeto real por esta narrativa, que motivou um filme inteiro. No entanto, o espectador jamais descobre mais de duas linhas seguidas evocadas pelas vozes em off. Estas frases são destituídas de contexto social e político, de relações de causa e consequência, de uma narrativa própria estabelecida pelo relacionamento do casal. Como o projeto motivado por cartas pode dedicar tão pouco tempo a lê-las, mostrá-las, colocá-las em diálogo uma com a outra?

Em contrapartida, testemunhamos dezenas de cenas em que a diretora-protagonista bate às portas das casas, questiona a respeito de Lúcia e Oswaldo, e responde um não como resposta. Valoriza-se a investigação e o esforço para encontrar os autores das cartas, ao invés do próprio teor das mesmas. Seria uma forma de pudor, de respeito à intimidade alheia? Ora, como tal pressuposto se justificaria, dentro de um filme cuja existência se deve à iniciativa de vasculhar o romance dos outros? Em geral, cada frase amorosa do documentário é interrompida pelo comentário carinhoso do leitor, ou por um choro abrupto. 

As cartas se transformam em ferramenta retórica de comunicação: são cartas de amor, simples assim, cabendo ao espectador supor os sentimentos específicos dos namorados. Caso Lúcia e Oswaldo tenham dotes para a escrita, traços particulares de linguagem, jargões e apelidos carinhosos, teremos que imaginar sozinhos. Os escritos nunca transmitem uma narrativa autônoma: Ney pesca apenas algumas frases pontuais, e desconectadas, que lhe interessem.

Talvez por isso, o aguardado encontro final possua um peso menor do que o calculado. A equipe não parece ter pensado com antecedência na abordagem, na luz, nos enquadramentos. O aguardado clímax transmite a incômoda impressão de ter sido resolvido na hora, quando se enquadrou a esmo, resolvendo-se de improviso, in loco. Ao espectador, sobra o encontro com dois desconhecidos: deparamo-nos com ambos sem conhecê-los de fato, sem termos recebido previamente os indícios de uma história singular. Sabemos que se amam, porém, faltam as anedotas, os episódios vividos apenas por eles, ou compartilhados apenas entre um e outro. 

Falta intimidade num filme sobre cartas íntimas, e psicologia para uma obra que busca investigar sentimentos. Em contrapartida, oferece-se a busca ativa e dedicada de uma artista para quem a finalidade (o encontro de Lúcia e Oswaldo) justifica os meios (as escolhas estéticas apressadas, o foco em fatos e ações ao invés do próprio texto). Parte-se do pressuposto que “todos os casais felizes se parecem”, para deturpar Tolstói, e de que o amor teria valor por si próprio. A potente decisão de procurar o casal se torna mais forte do que a execução desta jornada, e do que a recompensa (emocional e estética) da mesma.

Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem (2020)
5
Nota 5/10

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