Garota Inflamável (2019)

Loucura e liberdade

título original (ano)
Stillstehen (2019)
país
Alemanha
gênero
Comédia dramática
duração
91 minutos
direção
Elisa Mishto
elenco
Natalia Belitski, Luisa-Céline Gaffron, Giuseppe Battiston, Katharina Schüttler, Martin Wuttke, Hildegard Schroedter, Jules Elting
visto em
Cinemas

Julie (Natalia Belitski) é uma personagem desafiadora ao espectador em termos de identificação. Afinal, esta mulher leva uma vida de pequenos luxos dentro de uma clínica psiquiátrica, gastando a fortuna da família e demonstrando interesse e empatia nulos por aqueles que a cercam. Depois de encontrar um rapaz interessado nela, faz sexo sem real vontade, e ateia fogo no carro dele, porque assim o deseja. “O carro merecia”, justifica.

A jovem manifesta uma revolta quase adolescente contra a sociedade. Caso canalizasse essa inconformidade de modo político, poderia se transformar numa líder anarquista ou algo semelhante. Em contrapartida, ela se move pelo princípio do prazer, efetuando somente os gestos e ações que a estimulem naquele instante preciso. O título original, “Fique parado”, diz respeito ao lema da heroína, que decide não fazer absolutamente nada de seus dias, nem de sua vida. Afinal, ela detesta o culto contemporâneo ao desempenho.

Esta figura poderia ser compreendida em contraste a outras mais centradas — diversos dramas ou comédias independentes se baseiam na fricção de uma protagonista delirante num mundo de seres racionais, ou então, em chave oposta, na única pessoa racional num mundo de loucos. Ora, Julie é cercada por personalidades igualmente desagradáveis: a assistente encarregada de acompanhá-la se revela uma mãe sem amor pela filha pequena; as enfermeiras são frias ou autoritárias; o psiquiatra compara seus pacientes a animais selvagens.

Os moradores da clínica são descritos por um único traço de personalidade, no caso, seus tiques ou patologias. Rainer (Giuseppe Battiston) não pronuncia uma palavra sequer e interage com objetos invisíveis; Katrin (Katharina Schüttler) se vê presa na infância, decorando o quarto de rosa e idolatrando ícones de revistas adolescentes; e Luise (Hildegard Schroedter) se preocupa em ser considerada promíscua. Nunca conheceremos o passado, ou as ambições destes coadjuvantes: eles são resumidos a sintomas ambulantes.

A psicologia parece interessar à diretora Elisa Mishto somente até o ponto em que puder fornecer personagens excêntricos, estranhos, levemente engraçados.

Na verdade, a psicologia parece interessar à diretora Elisa Mishto somente até o ponto em que puder fornecer personagens excêntricos, estranhos, levemente engraçados. A autora se delicia com os gestos contrários à norma, ainda que destituídos de intenção. Ela ignora que mesmo os delirantes, os esquizofrênicos, os autistas possuem sua razão e lógica internos: Garota Inflamável diverte-se até demais com o aspecto de circo de bizarrices. No papel do visitante, o espectador é convidado a passear pelas atrações e admirar cada uma, sem jamais se colocar na perspectiva delas.

Aliás, a questão do ponto de vista soa particularmente problemática neste roteiro. A direção se recusa a observar o mundo pelos olhos de Julie, ou ainda da enfermeira Agnes (Luisa-Céline Gaffron). Ambas serão vistas de fora, com certa distância — ou seria medo? Esta atmosfera levemente descolada do real impregna a narrativa tão somente em sua peculiaridade ou exagero. Em paralelo, impede-se a representação imagética do aspecto “sujo”, mais incômodo do dia a dia (higiene, manutenção, preparo da equipe, admissão e alta de pacientes). Há algo de teatral neste espaço asséptico, próximo de uma casa de bonecas.

Para um projeto tão focado na saúde mental e na psicologia, surpreende o desinteresse pela condição de Julie. O psiquiatra chefe, Dr. Herrmann (Martin Wuttke) afirma ter estudado a garota durante dez anos, fracassando em formular uma única tese a respeito da condição da paciente. O quão improvável seria essa afirmação? A enfermeira Agnes, amedrontada, desperta dúvidas sobre a mínima formação que precisaria ter recebido para atuar na área, graças à composição absorta e amedrontada da atriz. A instituição parece um dos lugares menos seguros e equipados para lidar com as figuras que ali habitam.

A trama prefere que sua heroína reste na posição de um animal selvagem, uma espécie rara e indecifrável. Natalia Belitski brinca muito bem com o misto de lucidez extrema, sadismo e fragilidade, no cruzamento entre a sabedoria extrema e a idiotia. Não se sabe se Julie está um passo à frente de todos, ou um passo atrás deles. De qualquer modo, ela não caminha com os demais. Vestindo luvas de borracha amarela, que se recusa a tirar, afirma sentir-se protegida: “Assim todos entendem que sou louca e me deixam em paz”. Que loucos possuem tamanha consciência a respeito da própria loucura?

Já aproximação entre as duas mulheres deixa um gosto amargo. Mishto acredita promover uma união entre heroínas contrárias às normas sociais, que se encontram graças à sensação de vazio. O desejo homoerótico seria algo a comemorar, pela representatividade, caso não fosse confundido com desespero e inconsequência. A narrativa desenvolve uma experiência lésbica repleta de falhas morais: antiética, por unir paciente e enfermeira; ilegal, por envolver roubos e incêndios, e abusiva, por supostamente colocar uma mulher em plena saúde mental contra outra, incapaz de responder por seus atos.

Em outras palavras, mesmo o aspecto LGBTQIA+ está recoberto de fetiche: ao que tudo indica, a união entre Julie e Agnes poderiam se limitar ao sonho erótico de uma das duas, graças ao tratamento fantasioso do sexo na piscina. A cineasta não apenas retrata mulheres profundamente inconsequentes, mas também constrói uma narrativa que poderia ser considerada, em si mesma, desinteressada pelos rumos de cada uma. O sexo, neste caso, ocorre por tédio ou provocação. O desejo passa longe das imagens.

Garota Inflamável remete às produções norte-americanas independentes, em especial aquelas produzidas na década de 1990. Nestes casos, bastava aos criadores conceber dois tipos socialmente inaptos, tratá-los com o mínimo de carinho e permitir que se encontrassem no final. A sociedade continuaria se opondo às suas existências, no entanto, teriam um ao outro para aliviar a dor. A romantização da marginalidade marcou uma época e um segmento de mercado, ganhando seus equivalentes em outras partes do mundo.

É louvável que a comédia dramática não se concentre apenas em setores da sociedade mais estáveis, sejam eles abastados ou desprivilegiados. Mishto prefere os grupos em crises e acessos de fúria, graças ao potencial cinematográfico de assistir a uma menina tentar suicídio, e a outra atear fogo ao próprio corpo. Em contrapartida, ela jamais se importa de fato com essas figuras-tipo, arquétipos da inadequação, e caricaturas do outro. O carinho talvez disfarce um paternalismo, e mesmo a ridicularização de temas e personagens.

Garota Inflamável (2019)
4
Nota 4/10

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