Josefina Trotta: “Em Bonito, percebo como eu conhecia pouco do audiovisual fora de SP e RJ”

Manhãs de Setembro, Amigo de Aluguel, O Livro dos Prazeres, La Vingança, O Pastor e o Guerrilheiro, Meu Nome É Bagdá, As Protagonistas. Se você já assistiu a alguma destas séries e filmes, conhece o trabalho da roteirista argentina Josefina Trotta, que vive há dez anos no Brasil.

“Tenho trabalhado mais especificamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, tanto no cinema independente quanto no audiovisual comercial —fazendo séries, por exemplo. Além disso, sou cinéfila. Tudo o que aprendi sobre cinema veio em partes dos estudos, mas em partes, dos festivais na Argentina, sobretudo o BAFICI e o Festival de Mar del Plata. Aqui no Brasil, acompanho as mostras e os festivais”, ela explica.

Trotta também integra o júri oficial do primeiro Bonito Cine Sur — Festival Sul-Americano de Cinema, que ocorre no Estado do Mato Grosso do Sul. Em entrevista ao Meio Amargo, ela discute cinema brasileiro e argentino, as dificuldades de retomada pós-pandemia e a importância de um novo festival voltado à produção dos países da América do Sul.

A série Manhãs de Setembro (2021-2022), co-roteirizada por Josefina Trotta

Para você, qual é a importância da chegada de um novo festival neste momento?

Aqui em Bonito, depois de alguns dias assistindo aos filmes, percebo como eu conhecia pouco do audiovisual fora de São Paulo e do Rio de Janeiro. Nestes dez anos no Brasil, descobri a quantidade de novos olhares que surgiram devido à descentralização deste eixo. Penso, por exemplo, em Gabriel Martins e no cinema de Belo Horizonte. Ele fez Marte Um, e a produtora dele também fez Temporada. Esses são filmes que não existiriam sem a descentralização de Rio-São Paulo, que produz um audiovisual específico. Tenho descoberto esta abertura de vozes e olhares aqui no Bonito Cine Sur. Para mim, isso é muito importante, porque tenho um olhar de estrangeira. Fico me perguntando quantos brasileiros conhecem este cinema que vejo aqui no festival.

Por isso, a existência da primeira edição já me parece super importante. É a oportunidade de prestigiar a vasta quantidade de pessoas que fazem cinema nesta região. Agora, elas têm um lugar para mostrar seus filmes e, se tudo der certo, os filmes podem chegar à população para além dos convidados e frequentadores. Além disso, estou descobrindo cineastas sul-americanos que eu ainda não conhecia. É incrível conhecer os filmes deles, poder trocar com os artistas presentes e compreender as diferentes formas de fazer cinema em cada país.

Esses filmes não existiriam sem a descentralização do eixo Rio-São Paulo. Fico me perguntando quantos brasileiros conhecem este cinema que vejo aqui no festival.

O Brasil tem festivais com perfis totalmente diferentes. Basta pensar em Tiradentes, Gramado, Brasília… Qual é o perfil do Bonito Cine Sur? Que forma de cinema o novo festival defende?

Por enquanto, vi um cinema autoral que se afasta um pouco de um tipo de audiovisual que costumo ver, especificamente em São Paulo. Na capital, muitos diretores vêm da publicidade, ou pelo menos, desta forma de linguagem. É pouco comum encontrar os novos olhares. Logicamente, para encontrar estas novas pessoas, é preciso pesquisar, porque eles praticamente não têm distribuição. No Bonito Cine Sur, existe uma diversidade preciosa, difícil de encontrar em outros festivais.

Enquanto jurada, quais seriam seus critérios de avaliação de um filme? Você prioriza os temas sociais urgentes, a estética arrojada, a qualidade do roteiro?

Eu presto atenção a todos estes elementos. Mas quero chegar à sala de cinema sem nenhum preconceito, nem uma definição sobre como escolher os filmes. Entro nas sessão de coração aberto, para ser o menos analítica possível. É claro que, enquanto roteirista, tendo a prestar atenção nos roteiros. Mas não quero que este seja um dos únicos elementos capazes de definir um bom filme. Quero ser surpreendida, e se eu tiver um critério, será o filme que permanecer comigo durante mais tempo depois da projeção. É algo quase sensorial, subjetivo mesmo. Pelo que vi, os filmes são tão diferentes entre si — em roteiro e fotografia, por exemplo — que se torna difícil analisá-los por um padrão único, porque não se encaixam em uma única forma de olhar.

Pensando em cinemas brasileiro e argentino, ainda sustentamos o preconceito de que os argentinos fazem um cinema melhor, com roteiros mais interessantes. O que pensa dessa percepção popular?

Olha, existem filmes argentinos muito ruins, como em qualquer lugar do mundo. Existem muito ótimos, mas temos toda a variedade na produção argentina. Posso dizer que na Argentina, o audiovisual olha muito para si. O argentino é bastante autocrítico. Ao mesmo tempo, gosta de falar de si mesmo, de maneira autorreferencial. Isso define bastante as histórias.

Quando cheguei aqui no Brasil, as pessoas me chamavam para fazer adaptações de livros ou histórias de vida real. Eu pensava: “Mas você não tem nada para falar sobre você mesmo? Fale da sua família, do seu contexto sociocultural”. O argentino ama falar de si: para a gente, fazer filmes é uma espécie de terapia, uma extensão da psicanálise. Pensamos nossa vida, nossa cidade. Isso se conecta com qualquer pessoa, porque falar de si gera uma empatia. 

A tradição argentina na literatura e no cinema influencia os nossos roteiros. Lemos muito, escrevemos muito. No cinema argentino autoral, a maioria das diretoras e diretores escrevem e dirigem seus próprios roteiros, algo que talvez seja diferente do caso brasileiro. Este contato forte com a literatura também define a forma de escrever histórias.

Marte Um seria um bom exemplo de filmes que me tocaram, porque eu sentia que encontrava esses personagens quando saía da sala de cinema.

A Argentina também possui os “filmes do meio”, que nem são as obras herméticas para frequentar Cannes e Berlim, nem as comédias populares com xingamentos e humor físico. O país parece ter estas obras capazes de dialogar com crítica e público, algo raro no Brasil. Aqui, temos um abismo separando as duas pontas da produção.

Na Argentina, algo que me chama muita atenção é o fenômeno Juan José Campanella — quero dizer, o diretor de O Filho da Noiva e O Segredo dos Seus Olhos. Ele faz um cinema um pouco refinado, mas também bastante popular, que sempre conquista o sucesso de bilheteria. É um cinema que funciona para as classes-médias mais ou menos intelectualizadas. Campanella consegue chegar a um público enorme, inclusive fora do país. Aqui no Brasil, O Filho da Noiva é uma grande referência. Outro cineasta que fez sucesso aqui foi Damián Szifron com Relatos Selvagens. Nós nós vemos refletidos nestes filmes, que é sobre nós mesmos. Em Relatos Selvagens, por exemplo, existe a história do Bombita Rodriguez, o sujeito que fica irritadíssimo quando guincham o seu carro. Isso já aconteceu a todos nós! Ele coloca uma bomba no serviço do guincho. Todo mundo pode se relacionar com essas histórias.

Sinto falta de encontrar histórias assim no Brasil. Marte Um seria um bom exemplo de filmes que me tocaram, porque eu sentia que encontrava esses personagens quando saía da sala de cinema. Isso também acontece bastante com os retratos de Kleber Mendonça Filho, feitos a partir da realidade social no bairro onde ele cresceu. No caso de Minha Mãe É uma Peça, eu dou risada e acho engraçado, mas o filme está em outro registro, com o qual eu não consigo me identificar. 

O Livro dos Prazeres (2020), co-roteirizada por Josefina Trotta

No Brasil, tivemos Laís Bodanzky, Anna Muylaert e Jorge Furtado neste registro, mas nenhum deles seguiu dentro dos “filmes do meio” por muito tempo.

Outra coisa também modela o tipo de cinema que se faz no Brasil, ao meu ver. As produtoras e o próprio mercado priorizam estas histórias que podem chegar a um público amplo. Muitos dizem querer estes filmes autorais, mas na hora de produzir, hesitam, achando que não vai ter boa bilheteria. Me parece complicado. A descentralização ajuda produtoras de médio porte a viabilizar esse tipo de filmes, como Marte Um, que eu citei. Penso também em Pedágio, que talvez consiga se comunicar mais com a população em geral — não apenas com nós dois, que frequentamos festivais e sabemos que este filme existe. Aí entra a questão da distribuição, que é essencial. Nós sabemos que Pedágio existe, mas a maioria das pessoas, não.

Precisamos começar a falar daquelas personagens que a gente vê pelas ruas. Temos que escutá-las falar, ao invés de escrever a partir do estereótipo.

Este é um debate essencial, porque desde a retomada da pandemia, não conseguimos reestabelecer as bilheterias para filmes nacionais. Nem as comédias populares estão conquistando o público.

Eu já trabalhei para plataformas como a Amazon, e tenho vários colegas trabalhando para a Netflix. Já fiz algumas coisas mais vinculadas à comédia — e algumas delas, ainda priorizando o drama, como Manhãs de Setembro na Amazon. Antigamente, fiz a comédia Amigo de Aluguel para a Universal. Tenho a impressão de que ainda não encontramos o jeito de fazer humor no Brasil. Vi uma série muito boa da Amazon Prime, chamada Eleita, com a Clarice Falcão. Parece uma comédia física clássica, com piadas bobas, mas também tem uma crítica ao mundo da política. É uma comédia inteligente, capaz de atingir os dois públicos. Na Netflix, tem a série BO, com o Leandro Hassum. Assisti aos dois primeiros episódios, e posso dizer que não é meu tipo de humor. Mas parece que foi bem de audiência.

A minha intuição é que o público precisa se identificar com os personagens. Para além das piadas divertidas, precisa ter algum tipo de espelhamento entre o espectador e a personagem da ficção para que tenha uma conexão e as pessoas queiram assistir. O cinema inglês retrata muito bem a classe trabalhadora local, com um tipo de personagens que não costumamos ver em séries. Precisamos abrir a cabeça e começar a falar daquelas personagens que a gente vê pelas ruas. Temos que escutá-las falar, ver como se expressam, ao invés de escrever a partir do estereótipo. Senão, as histórias ficam superficiais, na minha opinião.

O Pastor e o Guerrilheiro (2022), co-roteirizado por Josefina Trotta

A gente está num festival sul-americano, e a política tem sido citada com frequência — sobretudo a ameaça representada pela candidatura de Milei na Argentina. Como vê este perigo a uma cinematografia tão consolidada?

A situação está bem complicada. Tenho esperanças de que Milei não vai vencer as eleições. Tenho pavor do que aconteceria caso ele ganhasse. Os trabalhadores do cinema e da cultura argentina estão se mobilizando, mas às vezes sou pessimista. Até onde chegam as nossas mensagens? Hoje recebi uma mensagem no grupo de WhatsApp da família, onde está proibido falar de política. É muito parecido com o que aconteceu no Brasil. Pela primeira vez, um primo começou a expor a ideia de que votar por Milei não seria uma boa ideia. Entrei na discussão política e disse o que pensava. Meu pai, hoje aposentado, foi vendedor de carros. Para ele, a aposentadoria e o Estado são essenciais. Mesmo assim, ele é tão anti-kirchnerista que não consegue enxergar sua situação futura caso este cara vença as eleições.

É parecido com a situação no Brasil antes da eleição de Bolsonaro. Fizemos um amplo trabalho pelas redes sociais, mas às vezes é difícil explicar para pessoas como meu pai que elas vão se ferrar caso Milei vença. Quero ser otimista, e pensar que ele não vai se eleger. Ao mesmo tempo, sou reticente quanto ao verdadeiro sucesso deste tipo de ações nas redes. No cinema argentino, se produz muito com ajuda europeia, tanto para o cinema autoral quanto para o cinema médio de que falamos. Todo mundo precisa de alguma ajuda externa. O que aconteceria se o Instituto de Cinema (INCAA) fechasse? Estamos falando de uma indústria cultural, que emprega pessoas e traz dinheiro ao país.

Neste momento, está acontecendo o Festival de Cinema de Mar del Plata, então penso que vai chegar alguma mobilização por aí neste sentido. As maiores referências do cinema contemporâneo estão lá. Vai ser importante unir as vozes, manifestar e tentar de alguma forma influenciar as nossas famílias e pessoas que se interessam pela cultura em geral.

Tenho esperanças de que Milei não vai vencer as eleições. Tenho pavor do que aconteceria caso ele ganhasse.

Você atravessou toda a gestão Bolsonaro enquanto já trabalhava no Brasil. Acredita que agora estamos num momento de alívio e otimismo, pela chegada de outro governo, ou ainda precisamos reconstruir a estrutura de apoio ao audiovisual brasileiro?

Sou otimista porque mudamos de governo, o que já foi enorme. Há tentativas de reativar a indústria neste momento. Graças a Lula e aos governos anteriores ao Bolsonaro, a indústria cresceu muito, especialmente o cinema autoral e independente. Hoje, temos uma quantidade maior de produtoras entrando nessa busca pelo dinheiro para contar suas histórias e criar seus filmes. Por isso, temos mais pessoas que precisam desse dinheiro. Por um lado, talvez os fundos possam ser maiores — e isso talvez seja utópico, porque já é uma quantidade significativa —, mas considero negativa a entrada dos grandes canais de streaming tentando captar um pouco do dinheiro público. Isso me preocupa, porque nos leva de novo à centralização. Estas empresas trabalham especificamente com os polos de São Paulo e Rio de Janeiro.

Tenho um colega que fez um filme para uma destas empresas de streaming, e depois de um tempo, a empresa tirou o filme do ar. Não existia mais. Era como se ele nunca tivesse sido feito, porque não pode ser mostrado em outros espaços, e os criadores não têm acesso a este produto. Ele se perdeu. É um problema grande. Através das associações de roteiristas, estamos tentando criar uma lei que proteja criadores, mas não está fácil. Não gosto de falar do protecionismo, mas sinto que, de algum jeito, o governo precisa proteger criadores do audiovisual. As histórias que a gente conta são nossas. Penso na regulamentação, nas cotas, em tudo.

Existe essa ideia popular de que cineastas reclamam o tempo todo. Mas a vida é assim! Se você não reclamar, as pessoas passam por cima, e a situação fica ainda pior. Precisamos debater e encontrar soluções para regulamentar o ingresso destas empresas no Brasil. Para nós, elas foram muito boas durante a pandemia. Eu, especificamente, trabalhei para a Netflix e a Amazon Prime. Foi bom ter esta fonte de trabalho, mas não é a única, nem a melhor. É importante dizer que os melhores salários e as melhores condições de trabalho não se encontram nestes canais. Eles foram necessários para nós, e continuam importantes, mas precisamos olhar para nós mesmos também.

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