Medusa Deluxe (2022)

Extravagância queer

título original (ano)
Medusa Deluxe (2022)
país
Reino Unido
gênero
Drama, Suspense
duração
101 minutos
direção
Thomas Hardiman
elenco
Clare Perkins, Kayla Meikle, Lilit Lesser, Debris Stevenson, Anita-Joy Uwajeh, Kae Alexander, Harriet Webb, Darrell D’Silva, Heider Ali, Luke Pasqualino, Nicholas Karimi, Michelle Parker, John Alan Roberts
visto em
Cinemas

Alguém matou o cabeleireiro Mosca durante uma competição de penteados. Ao que tudo indica, esta seria uma disputa de baixa relevância, restrita a poucos profissionais de uma cidadezinha. No entanto, para os participantes, trata-se do momento mais aguardado do ano, para o qual vêm se preparando há meses. Compreende-se que, por inveja ou vingança, alguém tenha eliminado o artista azarão, que teria, pela primeira vez, verdadeiras chances de vitória. Desde a primeira cena, está morto o homem em torno do qual gira toda a história. 

Curiosamente, seu rosto não será visto, apenas sugerido pela fala de terceiros. Nunca testemunhamos o crime, nem descobrirmos o cadáver (situado num andar superior, ao qual os possíveis malfeitores jamais têm acesso). Os policiais estão ausentes, embora se vejam carros com girofaros ligados na rua. Nenhuma investigação se instaura por parte das autoridades. As únicas suspeitas, neste caso, provêm dos acusados, atacando uns aos outros, verbal e fisicamente. Esta é a oportunidade de reacender desavenças adormecidas, disparar preconceitos, revelar segredos e mostrar do que estas pessoas são capazes.

Em outras palavras, o crime constitui mera desculpa, um catalisador em plano de fundo para que os personagens se digladiem, temendo ser descobertos ou presos pelo crime que, supostamente, não cometeram. Afinal, há outras irregularidades em jogo: a possível compra de resultados da competição, o uso indiscriminado de cantores para influenciar os jurados, o envolvimento amoroso de diversos cabeleireiros com o diretor do evento. Há culpados demais ou, melhor dizendo, todos possuem pendências não resolvidas. O motivo do cadáver escalpelado — neste contexto, o homicídio envolve cabelos arrancados — permite iniciar o filme quando os ânimos já estão bem exaltados. Há catarse a gosto, em todas as cenas.

Golpes do destino e exageros se inserem numa estética assumidamente kitsch, em oposição ao realismo procurado pela maioria dos filmes em plano-sequência.

Ao mesmo tempo, a esperta narrativa se recusa a eleger heróis ou vilões, mártires ou agressores. A estrutura coral reúne uma dúzia de personagens multiétnicos sob os holofotes, ocupando tempo equivalente de cena. Através das brigas, acusações e provocações, eles manifestam personalidades diferentes e objetivos distintos, como raramente se encontra num único longa-metragem. A agressiva Cleve, a materna Kendra, a religiosa Divine, o diretor manipulador René, o dúbio segurança Guac, a pacífica modelo Timba, a inquisidora e valente Inez, expressam-se com frases, entonações e intuitos diferentes. Existe um cuidado formidável na construção de personagens. 

Em paralelo, nenhum ator se sobressai aos demais, e tampouco existem elos fracos no grupo. Todos dominam com clareza o propósito de cada cena (não existe uma única interação dispersa, alongada demais, ou inútil), assim como o ritmo das sequências — mais cômicas ou mais assustadoras. A fotografia de alto contraste e as cores “queimadas” proporcionam impressionante coesão à obra que nunca desacelera, nem perde os rumos. Este imenso imóvel, de corredores infinitos e cômodos vazios, ostenta iluminação cuidadosa tanto nos banheiros quanto vestiários, nas salas de ensaio e escritórios da direção.

Tamanha organicidade se torna ainda mais chamativa diante da escolha de produzir um longa-metragem em plano-sequência. Com exceção da sequência de abertura, em animação (retratando figuras humanas brigando entre secadores e escovas gigantes), o resto se desenvolve como um plano único. Os diversos rostos falam sem parar, entram e saem de quartos, perambulam pelos corredores, buscam os outros em cantos distantes do prédio. Há cortes invisíveis entre os planos, porém a direção de fotografia de Robbie Ryan reproduz a impressão de uma tomada única. Favorece-se portanto a imersão nas cenas, a impressão de tempo real e ao vivo. Descobrirmos o desenlace do assassinato junto aos personagens, pelos olhos deles. Ninguém possui mais ou menos informações do que os demais — uma configuração que teria sido indispensável ao suspense.

É claro que a escolha pelo plano-sequência se confronta a problemas estruturais comuns a esta linguagem. Isso significa que portas estarão convenientemente abertas para a passagem da câmera, mesmo quando pessoas trocam confidências. Algumas desculpas são encontradas para ocupar os personagens, posto que estão ficam disponíveis, em cena, o tempo inteiro. Às vezes, algumas modelos ou cabeleireiras deixam o recinto de modo abrupto, para talvez irem ao banheiro, e deixarem a cena livre aos demais. Os recursos artificiais são perceptíveis.

No entanto, Medusa Deluxe se resolve incrivelmente bem dentro deste formato — com mais naturalidade do que Victoria (2015), Perdido em Londres (2017), Utoya 22 de Julho (2018) e O Chef (2021), por exemplo. A distância entre os cômodos permite que os personagens realmente e desloquem e busquem uns pelos outros no interior do prédio. Em outras palavras, a movimentação se justifica. A tensão inerente à morte os torna frenéticos, e o fato de serem possíveis interrogados os proíbe de abandonar o prédio. Ao mesmo tempo, o medo de estarem perto do assassino faz com que se dispersem. Eles estão juntos e separados, indo de encontro aos demais (para confrontá-los) e fugindo uns dos outros. A dinâmica de atração e repulsa funciona muito bem na estrutura do longa.

Além disso, eventuais golpes do destino e exageros se inserem numa estética assumidamente kitsch, em oposição ao realismo procurado pela maioria dos filmes em plano-sequência. O diretor Thomas Hardiman investe em luzes próximas de um bar decadente; apresenta penteados extravagantes e absurdos; insere brigas por vaidade ou poder que beiram o delírio. Conforme avança, a descrição dos penteados e os acontecimentos aproximam a aventura da fantasia, como se tudo não se passasse de um intenso pesadelo. A presença de cadáveres escalpelados, modelos incendiadas e tráfico de medicamentos na competição acena à brincadeira com gêneros do cinema clássico.

O prazer do exagero se traduz, gradativamente, numa divertida insanidade queer. Desde o princípio, uma traição é descoberta pelo “bafo de porra” na boca do namorado heterossexual. Os namoros entre diversos homens e as admirações entre mulheres sugerem uma atração fatal digna da estrutura novelesca. O cineasta começa com conflitos fortes, aumentando em seguida o volume dos embates, até uma inevitável explosão de cores e afetos LGBTQIA+. A presença do coral gospel, a excelente conclusão com um número musical, e a desconfiança de todos em relação a Gac (no mundo dos cabelos, o possível culpado seria o único careca) abraçam orgulhosamente a caricatura, porém sem qualquer desrespeito às identidades em questão. 

Além disso, no interior deste plano-sequência, Hardiman consegue romper com cronologia, sugerindo delírios, flashbacks e caminhos alternativos — uma verdadeira preciosidade para um dispositivo tão colado ao tempo presente. Há uma quantidade impressionante de ambições estéticas, de linguagem, técnicas e narrativas ao longo desta obra fascinante, marcada pelo investimento exemplar de todos os envolvidos (tanto atores quanto diretores de fotografia, diretores de arte e compositores da ótima trilha sonora). O cinema queer raramente se encontra com o cinema de autor de forma tão provocadora e bem resolvida.

Medusa Deluxe (2022)
9
Nota 9/10

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