Miss França (2020)

O queer domesticado

título original (ano)
Miss (2020)
país
França, Bélgica
gênero
Comédia, Drama
duração
107 minutos
direção
Ruben Alves
Elenco
Alexandre Wetter, Isabelle Nanty, Pascale Arbillot, Thibault de Montalembert, Stéfi Celma, Quentin Faure, Claire Chust, Baya Rehaz, Amanda Lear
visto em
Cinemas

Um jovem de identidade fluida sonha em se tornar Miss França. Esta é literalmente a primeira informação fornecida a respeito do protagonista, e se tornará o único mote do herói durante a trama. Alex (Alexandre Wetter) será definido por este desejo, apesar de desconhecermos a origem da fascinação pelos concursos de beleza: que ideal o jovem possui acerca destas competições? O que a eventual vitória representaria? Ora, ele jamais reivindicou para si próprio uma versão convencional da feminilidade, ou qualquer apreço pelo universo da moda e da beleza.

Os obstáculos para a concretização do desafio soam óbvios: como um concurso gigantesco aceitaria um rapaz na seleção? Afinal, haveria problemas de documentação, a falta de experiência na área, além do desconhecimento incompreensível a respeito do mundo das miss, para alguém que aparenta ser fascinado pelo tema. A barreira se encontraria, portanto, no preconceito e no reconhecimento: por que um homem biológico, não-binário, não poderia representar o ideal de beleza feminina da França?

As intenções do diretor Ruben Alves são nobres. Ele deseja promover a inclusão, estimular o afeto por indivíduos fora dos padrões cisnormativos, e defender a ideia de que qualquer um pode conquistar seus anseios mais profundos, contanto que o deseje de fato e se esforce para isso. No fundo, esta comédia feel good se assemelha aos equivalentes norte-americanos, nos quais os patinhos feios lutam contra o sistema e provam sua capacidade fazer o que bem desejarem. “Ela vai tornar um sonho realidade!”, garante o cartaz brasileiro, para não deixar dúvidas ao espectador quanto ao desfecho.

O problema deste conto de fadas se encontra no mínimo contato com o real. Para permitir a inserção de Alex nos concursos de beleza, o roteiro promove uma ascensão meteórica improvável. Ele sonha em se candidatar às eleições estaduais, inscreve-se de última hora, é aceito prontamente, mostra-se despreparado a cada prova e recebe o troféu — isso tudo, nos primeiros vinte e cinco minutos de trama. Nada naquele contexto permite acreditar nesta vitória mágica: não que falte beleza ou talento do ator principal, mas o filme se esforça em mostrar uma conquista abrupta, próxima do toque de mágica.

Miss França passa longe dos alvos que busca atingir, e talvez contra a sua vontade, reforça os preconceitos que pretendia desconstruir.

Miss França (2020) pega emprestado do cinema americano de massa os elementos necessários para provocar conforto e oferecer uma recompensa emocional ao espectador heterossexual e cisgênero (o público realmente visado pelos autores). Alex está sempre atrasado, por motivos inexplicados, precisando superar uma dificuldade suplementar graças à indisciplina. Ele corresponde às heroínas de comédia romântica, sempre atrapalhadas, tropeçando e caindo com frequência. O aspirante a miss tem seu maiô rasgado, antes de desfilar sem sapatos e deslocar um seio. Quanto menos propenso a se tornar um ícone nacional, maior o cineasta acredita que será a conquista final.

Chega-se então ao questionamento ético mais grave do projeto: a crença na cisgeneridade e normatividade do herói. Alex apenas cresce no mundo da beleza porque todos acreditam que se trate de uma mulher cisgênero, e ele sustenta esta ilusão para se manter na disputa. A identidade fluida do ator, e do personagem, se torna óbvia aos olhos do espectador. No entanto, Alves acredita que a comédia agridoce se encontraria na sustentação da farsa: os jurados estariam elogiando um rapaz fluido, sem saber que não se tratava de fato de uma mulher cis. Há um caráter de ultraje, ou de traquinagem, no próprio gesto de Alex em se candidatar — algo nunca percebido como natural ou de direito.

No cinema brasileiro, o ótimo Deserto Particular (2021) incomodava por um único aspecto: a crença de que o espectador, e o protagonista, precisassem ser mantidos em segredo quanto à identidade real do sujeito amado para que o relacionamento se desenvolvesse. A intenção, segundo o diretor, era uma vez mais apelar ao público cis-hétero majoritário. Isso equivale, em primeiro lugar, a esconder a transgeneridade, no caso da ficção nacional, e o não-binarismo, no equivalente francês, enquanto motivos de vergonha, sugerindo que seria mais fácil para todos os envolvidos caso as expressões da alteridade fossem mantidas em segredo.

Segundo, a jornada reforça a impressão de que travestis, transexuais, transgêneros e todas as identidades não-normativas correspondem a uma trapaça, uma tentativa de se passar por algo que não se é. A mídia tradicional e os veículos direitistas sempre propagaram a mensagem de que estes indivíduos tentam trapacear pessoas desavisadas, utilizando a percepção de feminilidade enquanto disfarce e instrumento de manipulação. Historicamente, o cinema queer de viés punitivo e moralista associa o feminino à sedução perversa, e o travestimento, à ridicularização ou à mentira. Uma cafetina observa o personagem central e decreta: “Você nunca, nunca será uma mulher”. Nada desconstruirá este discurso nas cenas seguintes.

O caráter nocivo se acentua diante do transfake cercando o herói. Na família adotiva de Alex, há imigrantes indianos, dois rapazes periféricos (um árabe, e outro, negro), e uma prostituta trans interpretada por Thibault de Montalembert. O ator cisgênero de Dez por Cento (2015 – 2020) reforça os trejeitos da travesti envelhecida e pouco desejada. Ora, de que adianta contratar um ator fluido para o papel central, e reforçar a ideia do trans enquanto fantasia humorística nos papéis secundários? A falta de construção psicológica às minorias se torna igualmente contestável: as indianas exploradas amam ser exploradas no trabalho, e os colegas pobres servem de caricaturas de uma miséria ignorante. Todos estão acomodados na função social que desempenham. 

Deste modo, nenhuma minoria recebe um tratamento respeitoso, ou destituído de uma caracterização depreciativa — ri-se deles, ao invés de com eles. As instâncias legitimadoras do poder, no caso, as misses veteranas e os donos dos concursos têm sua subjetividade preservada das piadas, enquanto o alvo do ridículo recai sobre os indivíduos LGBTQIA+, negros, indianos, trans, pobres, prostituídos. Neste caso, o cinema queer, nascido da urgência de romper com padrões tradicionais, se domestica e implora para ser aceito pelos mesmos grupos que o desprezavam até então.

Em algum momento, a revelação da “verdade” quanto a Alex surgirá, acarretando consequências terríveis. O roteiro nunca sabe o que fazer após esta sequência, investindo numa saída otimista e mágica ao herói transformado no Ícaro mítico. É preciso manter as cores quentes, o ritmo leve e veloz, e as interações inconsequentes. Por isso, uma miss é denunciada por consumo de drogas, e logo depois, esquece-se o caso; um homem apalpa a candidata em público, e nada acontece ao violador. É preciso deixar a realidade em último planos, afinal, questões sérias complexificariam a obra que insiste em permanecer na superfície.

Por fim, Miss França passa longe dos alvos que busca atingir, e talvez contra a sua vontade, reforça os preconceitos que pretendia desconstruir. Não basta oferecer uma versão de Cinderela a um rapaz fluido para garantir a inclusão através do afeto e da meritocracia. A fuga à cisgeneridade, retirada de seu contexto, ou seja, sem as dificuldades e as implicações psicológicas de um corpo demarcado socialmente, resume-se a uma festa à fantasia. O cinema queer, e a representação trans/não-binária em particular, merecem mais do que um enésimo convite à superação do preconceito através de sorrisos e afagos.

Miss França (2020)
3
Nota 3/10

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