Morte Morte Morte (2022)

As redes sociais também morrem

título original (ano)
Bodies Bodies Bodies (2022)
país
EUA
gênero
Terror, Comédia
duração
94 minutos
direção
Halina Reijn
elenco
Amandla Stenberg, Maria Bakalova, Rachel Sennott, Chase Sui Wonders, Pete Davidson, Myha’la Herrold, Lee Pace, Conner O’Malley
visto em
Cinemas

A primeira imagem deste filme corresponde ao plano próximo do beijo entre duas garotas — uma delas, negra, e a outra, estrangeira em relação às amigas norte-americanas. Durante um fim de semana com festa e piscina, elas discutem dependência química, bipolaridade, privilégio branco, vitimismo, desigualdade social, relacionamentos tóxicos, exibicionismo nas redes sociais, gaslighting e vários outros conceitos que, se não foram criados no século XXI, se tornaram muito mais potentes na nossa geração.

Morte Morte Morte é um projeto obcecado com a ideia do outro, ou seja, da alteridade e de nossa percepção sobre a diferença. Quando um assassinato ocorre durante o passeio, ninguém procura por evidências: começa um jogo instantâneo de acusações, baseado unicamente em preconceitos. Bee (Maria Bakalova) é considerada suspeita por sua origem (“Você é de Moscou?”, dispara uma das meninas); a outra, por ser adorada por dois meninos ao mesmo tempo; a terceira, por se considerar de classe popular, apesar da situação financeira confortável dos pais; e uma quarta, por ter atravessado episódios de overdose num passado recente. 

Assim, importa pouco quem matou de fato (vide a brilhante conclusão, quando a verdade é revelada), e sim a ideia de quem poderia ter matado. Esta é uma obra que exagera, ao nível do absurdo, a polarização política e a tendência a demonizar o campo adversário pelo simples fato de corresponder a uma identidade diferente da nossa. Não por acaso, o grupo heterogêneo é formado por pessoas mais jovens e mais velhas; brancas e negras; gays e heterossexuais. O roteiro se esforça para construir um caldeirão tragicômico da juventude norte-americana atual.

O foco se encontra no grupo supostamente progressista, que entende a necessidade de criar um “espaço seguro” para falar seus dilemas, respeitar a saúde mental alheia e tolerar outras formas de existência — pelo menos, até o sangue começar a jorrar pelos cômodos da mansão. Uma vez instalada a carnificina, revelam a hipocrisia desses códigos bem-pensantes, transparecendo seus preconceitos e o ódio velado contra os demais. A diretora Halina Reijn jamais critica a adesão à pluralidade, apenas a pretensa aceitação do outro, por medo de ser cancelado ou excluído de círculos sociais.

Os personagens estão insatisfeitos com suas vidas medíocres, seus relacionamentos fracassados, sua inserção social limitada. Para o bem ou para o mal, este é um filme de frustrações.

Em outras palavras, a narrativa aborda a imagem que as pessoas fazem de si, a busca por aprovação, e a tendência a julgar os demais. Aqui, rede social é uma questão de moral. O grupo carrega constantemente um celular nas mãos, cuja bateria jamais acaba (sendo fundamental para enxergar no escuro, visto que a noite ocupa a maior parte da trama). Eles mandam mensagem, cobram participação no grupo, gravam vídeos para o TikTok, mencionam o Venmo e outros aplicativos. A verdade será finalmente revelada por um telefone celular, seja para se descobrir o criminoso, seja para esclarecer pontos do relacionamento tenso entre as protagonistas. 

Por isso, Morte Morte Morte se assemelha a um Meninas Malvadas (2004) da geração Z. Isso significa que os personagens são ainda mais colados aos seus dispositivos, possuem profunda consciência de suas identidades (gay, hétero, branco, negro, rico, periférico, bipolar etc.) e se mostram apáticos politicamente. Não por acaso, nenhuma das amigas tenta impedir as mortes, apenas apontar o dedo aos demais. O jogo de Bodies Bodies Bodies, que motiva o título original, se converte numa matança e um jogo de acusações real, com consequências letais.

Esta configuração levou tantos espectadores a considerarem o filme amargo, cínico, repleto de “personagens desagradáveis”. De fato, a cineasta jamais se apieda sobre nenhum membro do jogo, criando motivos suficientes para todos serem falhos, excessivos, intolerantes, mimados. As atitudes são condenáveis, egoístas, sem qualquer traço de heroísmo ou virtude no horizonte. Não existe um vilão propriamente dito — aqui, eles serão seus próprios algozes, constituindo o motivo da ruína alheia.

Por esta razão, o público não é convidado a torcer por ninguém em particular. A questão do ponto de vista é particularmente delicada no longa-metragem: ao contrário de franquias como Pânico, que convidam o espectador a descobrir o assassino e temer por Sidney Prescott e seus amigos, aqui o olhar permanece à igual distância de todos, sem tomar partido, nem envolver o espectador na gincana de acusações. Ao contrário do whodunnit aos moldes de Agatha Christie e Entre Facas e Segredos (2019), pouco importa quem está de fato proporcionando a morte. 

Assim, o clímax é composto de meninas gritando, falando sem parar, acusando-se mutuamente. Nada é revelado de fato no ápice da história — há somente relações humanas se deteriorando. Esse constitui um dos méritos, e também um dos problemas do filme: a aparente inconsequência e desapego em relação aos personagens. Permanecemos à tamanha distância dos conflitos que nos tornamos indiferentes às sucessivas mortes. Afinal, nem sequer os conhecíamos bem — portanto, que se devorem, se eliminem entre si. O mundo lá fora tampouco se importa com este grupo ensimesmado. Há um aspecto niilista, de pouca recompensa emocional ao espectador. Esta é uma obra mais pessimista do que propriamente divertida.

A estética acompanha esta recusa à facilidade. Reijn conduz inúmeras cenas na noite, sob a chuva feroz, com a câmera tremida e a luz pontual dos telefones celulares. Enxerga-se pouco, oferecem-se noções de causa e consequência. É interessante que os personagens sejam iluminadores e criadores de imagens — correspondendo, em certa medida, a diretores de suas próprias ficções —, no entanto, a jornada jamais oferece cenas muito potentes em si mesmas, pelo enquadramento, luz, textura. A cineasta está mais preocupada em criar imagens verossímeis para os tempos de redes sociais do que em chamar atenção aos seus malabarismos de câmera.

Resta uma obra mais revelante por seu conceito e ambições do que pela realização. Trata-se de uma premissa de assassinatos no qual se veem poucas mortes (muitas ocorrem fora de quadro, longe dos nossos olhos); um encontro entre figuras hormonais, preocupadas com a “cara de que transam bem”, mas que fazem pouco sexo. É um horror sobre a ideia do gozo, repleto de jovens incapazes de gozar; ou sobre a imagem do desejo, que jamais se converte em prazer de fato. Os personagens estão insatisfeitos com suas vidas medíocres, seus relacionamentos fracassados, sua inserção social limitada. Para o bem ou para o mal, este é um filme de frustrações. 

Morte Morte Morte (2022)
7
Nota 7/10

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