Nirez Eterno (2023)

O cinema enquanto homenagem

título original (ano)
Nirez Eterno (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
73 minutos
direção
Aderbal Nogueira, Glauber Paiva
visto em
33º Cine Ceará

O documentário Nirez Eterno parte da intenção assumida de homenagear o colecionador, arquivista e pesquisador cearense Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. As falas confessam com surpreendente sinceridade tal vocação: “Ele é uma pessoa que tem que ser homenageada e vangloriada, como estamos fazendo aqui”. “É nosso trabalho reverenciá-lo sempre”. Por isso, o terço final convida uma dezena pessoas que conhecem e amam o protagonista, para repetir ao espectador o quanto ele seria amável.

Neste sentido, o projeto cumpre seus objetivos. Demonstra com clareza a paixão deste homem por seu arquivo fonográfico, a dedicação às novas descobertas de acervo, a valorização do patrimônio. Nenhuma falha, inconsistência, ressalva de caráter ou temperamento virá manchar a descrição unicamente positiva. A quem interessar possa, Nirez é um homem excelente. 

Através da elegia, o projeto se dá por satisfeito. Termina exatamente no ponto onde começou, ou seja, no desejo dos diretores Aderbal Nogueira e Glauber Paiva em comprovar a tese prévia das qualidades do protagonista. Ressente-se a falta de qualquer descoberta, surpresa, curiosidade no processo de investigação. As imagens foram concebidas apenas para reforçar uma crença preexistente: “Ele é ótimo, deixa eu mostrar pra você”, sugere cada imagem. A abordagem se aproxima de uma defesa deste homem (que, até onde se saiba, não vinha sendo atacado por ninguém), em detrimento de uma ponderação acerca de sua vida. Este é um filme feito para ele, nunca com ele.

Faltou desenvolvimento conceitual da parte estética, um diálogo entre o som do filme e o som preservado pelo protagonista. Falta discutir a necessidade de conservar vinis e películas enquanto se faz um filme em digital ágil e caseiro.

Esta afirmação pode soar inconsistente com o fato de Nirez Eterno dedicar dois terços da projeção a uma longa entrevista com o próprio pesquisador. Sentado ao lado de dois aparelhos fonográficos, ele discorre a respeito de cada passagem de sua vida, de maneira rápida e cronológica. A montagem lista estes fatos como uma sucessão de dados, à la Wikipédia: ele colecionou fósforos, trabalhou no jornal O Povo, se casou. Estes fatos parecem desconectados, ou seja, um jamais constitui a causa ou consequência do outro. No entanto, todos ocorreram, e isso basta à edição.

Parte considerável das imagens decorre desta única entrevista, realizada em um único plano. A decisão empobrece significativamente o resultado. Embora se tente encontrar alguma dinâmica com cortes dentro do quadro, ou pequenos movimentos à direita e à esquerda, há pouco interesse estético dos diretores em suas próprias imagens, algo que se transmite ao espectador. Nirez constitui uma finalidade em si mesmo: contanto que discorra a respeito de si, e traga muitas informações, o conteúdo será valioso. Importaria pouco o modo como esses dados chegam aos nossos olhos.

Ora, estaria precisamente neste aspecto a função de uma obra de arte. O cinema pode representar as conquistas do homem, ilustrar seus percalços, valorizar um aspecto ou outro. A decisão eventual de escutar o testemunho do protagonista num close-up, ou em plano aberto, produziria efeitos totalmente diferentes. Intercalar a fala dos entrevistados ou deixá-las apenas no segmento laudatório final também implica em significados distintos. A estética não pode ser deixada em segundo plano, sob pretexto de que seria secundária em relação ao protagonista. 

Aí residem as fragilidades do longa-metragem. A imagem se esgota rapidamente com o plano repetitivo do homem sentado, captado por um digital de baixa qualidade, de pouco contraste e volume. Para um personagem profundamente interessado em som, surpreendem os problemas de captação e edição sonora: Nirez bate na lapela, o diretor tosse em mais de um momento, e depois ri das respostas, interrompendo o personagem durante a fala. Inexplicavelmente, estes instantes sobrevivem ao corte final, transparecendo a aparência de pouco refinamento na finalização. Como falar de um homem dedicado ao som, sem pensar, no caso do próprio filme, em honrá-lo através da excelência sonora?

A montagem se presta a repetir trechos, voltar em falas previamente enunciadas. Nirez informa duas vezes a respeito de sua mudança do Ministério da Aviação ao Ministério da Educação, e então à Universidade Federal do Ceará. Apresenta duas vezes o fato de ter um filho especializado em som, capaz de limpar ruídos de arquivos antigos. A edição repete imagens, a exemplo do colecionador revelando os livros escondidos por trás de um painel de fotografias. Nota-se o cuidado insuficiente com o ritmo e encadeamento de ideias, que retornam ciclicamente.

Além disso, o terço inicial se assemelha demais a uma entrevista de emprego. Nirez elenca suas experiências, passagens por uma empresa ou outra, sua capacidade de desempenhar tal ou tal atividade. Para além de dados e fatos, o que este homem pensa, em geral, sobre cultura a preservação? Quais seriam seus fonogramas preferidos, suas discordâncias com outras instituições, suas estratégias de sobrevivência entre distintos governos federais e estaduais? Ele chega a criticar, por alto, a gestão cearense de Camilo Santana e Cid Gomes. No entanto, as opiniões jamais se desenvolvem.

Teria sido fascinante conhecer mais do que este homem de profundo conhecimento pensa, para além do que ele fez. Tamanha instrumentalização de Nirez se cristaliza no terço final, profundamente incômodo, quando a obra desenvolve um fetiche mórbido pelo falecimento de Nirez. Discute-se a continuidade do arquivo, o dinheiro para manter o museu aberto, as melhores ferramentas para apelar à iniciativa privada e conseguir fundos para o espaço seguir em funcionamento, apesar da passagem de seu criador. O homem recebe uma homenagem póstuma, apesar de continuar em vida. 

Ao final, resta a curiosa impressão de que Nirez Eterno não possuía material suficiente para um longa-metragem. Faltou desenvolvimento conceitual da parte estética, um diálogo entre o som do filme e o som preservado pelo protagonista. Falta discutir a necessidade de conservar vinis e películas enquanto se faz um filme em digital ágil e caseiro — e certamente não são os “efeitos de película queimada”, nas transições, que ajudam a estabelecer uma reflexão do gênero. Seria necessário compreender o homem, o pensador, o bastião cultural, para além de uma rápida leitura de seu currículo, encerrada pela colagem de elogios. O cinema se presta muito mais à reflexão e ao diálogo do que à peça institucional para canonizar o sujeito já amado e, felizmente, ainda vivo e ativo.

Nirez Eterno (2023)
3
Nota 3/10

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