Quando Finalmente Voltará a Ser Como Nunca Foi (2023)

Onde vivem os loucos

título original (ano)
Wann Wird Es Endlich Wieder So, Eie Es Nie War (2023)
país
Alemanha
gênero
Drama, Comédia
duração
116 minutos
direção
Sonja Heiss
Elenco
Arsseni Bultmann, Laura Tonke, Devid Striesow, Pola Geiger, Camille Loup Moltzen, Casper von Bülow, Merlin Rose, Axel Milberg
visto em
73º Festival Internacional de Cinema de Berlim (2023)

“Nada supera a pureza das crianças e dos loucos”. A frase popular imputa às pessoas desprovidas de razão (os loucos) e de conhecimento (as crianças) a capacidade de permanecer sincero, verdadeiro, em meio a uma sociedade que se supõe destruidora de tais virtudes. O preceito parte do mito do bom selvagem: o homem nasceria bom, até ser corrompido pelo meio. No caso, o fato de pessoas com distúrbios mentais serem privadas de uma plena compreensão do mundo as manteria, de certa forma, num estágio de eterna infância.

Estas reflexões ajudam a pensar sobre a comédia dramática alemã onde as duas esferas convivem de modo quase indissociável. Josse (Arsseni Bultmann, na adolescência) cresce entre as alas de um hospital psiquiátrico, pois seu pai, o diretor da instituição, mora no próprio estabelecimento. O garoto está acostumado a presenciar surtos, tentativas de suicídio, tiques, manias, dificuldades de comunicação. Ele se torna amigo do sujeito emudecido com um sino nas mãos; além da garota impulsiva, da outra depressiva, e assim por diante.

O pequeno herói consiste numa síntese entre razão e loucura. Familiarizado com termos médicos e respeitoso diante das crises alheias, ele mesmo manifesta ataques incontroláveis de raiva, quando grita a plenos pulmões. O menino somente se acalma quando colocado sobre a máquina de lavar, chacoalhando de um lado para o outro. Os irmãos mais velhos, pouco interessados no mundo de enfermeiras e medicamentos, consideram que Joachim deveria estar internado com eles. Em duas oportunidades, o menino será confundido com um dos internos.

O ponto de vista único faz com que o longa-metragem narre o mundo por uma perspectiva de estranhamento, como se o herói não fizesse parte dele. Situações normais — uma conversa, o flerte com a menina bonita, o deslocamento da casa para o trabalho — se convertem em aventuras ressignificadas pela presença dos pacientes ao redor. Estes últimos almoçam e tomam café junto ao diretor Richard (Devid Striesow) na casa dele, que se torna uma extensão da clínica. Nesta adaptação do livro Quando Finalmente Voltará a Ser Como Nunca Foi, de Joachim Meyerhoff, não há limite entre espaços público e privado, ou entre o individual e o coletivo.

O absurdo das interações se prova responsável por um humor discreto e respeitoso. O espectador jamais é convidado a rir dos loucos, nem de sua diferença em relação à “normalidade”. Pelo contrário, há evidente empatia e afeto por estes personagens.

Logo, o ambiente excepcional para a criação de crianças se torna algo próximo das experiências radicais de coletividade na natureza, sem regras (ou com regras atenuadas), onde todos compartilham tudo e se permitem expressar sentimentos e desejos em liberdade. Esta microcomunidade representa um “espaço seguro”, nos termos comuns à psicologia popular de hoje. Quando todos são loucos, ninguém realmente o é — isso inclui as obsessões do pai com o desempenho profissional, e da mãe com a Itália, onde reside o verdadeiro amor de sua vida.

O absurdo das interações se prova responsável por um humor discreto e respeitoso. O espectador jamais é convidado a rir dos loucos, nem de sua diferença em relação à “normalidade”. Pelo contrário, há evidente empatia e afeto por estes personagens, de modo que apenas os pilares da sociedade tradicional serão ridicularizados: a monogamia, a fidelidade, a expectativa de virgindade, o respeito aos prefeitos e governadores. Estão ausentes a religião, as escolas e demais locais de convivência institucional. Apartados da realidade contemporânea, podemos observar a distância em relação deste contexto à nossa própria sociedade.

Logo, os deslocamentos de sentido se abrem a provocações da ordem do realismo fantástico. A diretora Sonja Heiss permite pequenos parênteses nos quais a diferença se traduz em fonte de maravilhamento. Por isso, um laço jogado aos ares parece voar lentamente até as mãos de Josse, e um quarto comum se converte num gigantesco aquário. Richard caminha até a clínica num carro imaginário, conduzido por um dos pacientes. “Não vai pegar carona hoje?”, pergunta ao filho, com toda a seriedade e serenidade do mundo. O absurdo, aqui, nasce do fato de não ser considerado como tal. A loucura perde qualquer forma de julgamento moral.

Enquanto isso, o roteiro demonstra a delicada passagem à fase adulta neste meio tão acolhedor quanto extremo, no que diz respeito ao contato com sentimentos. Crescer equivale a descobrir que o amor dos pais um pelo outro não é incondicional, que a virtude do pai possui suas falhas, que a mãe generosa pode estar à beira do colapso. O filme desenvolve com carinho a percepção gradativa de que entrar no mundo dos adultos implica em perder qualquer forma de idealização sobre suas qualidades e capacidades. Adultos são aqueles que falham, que gritam, que se contradizem. 

Aos poucos, o real se impõe duramente sobre a aventura onde tudo era possível. Começando pela jornada alegre à praia, onde a água no umbigo do pai determina o tempo de permanência na água (enquanto o umbigo estiver molhado, o filho pode se divertir), o narrativa que atravessa décadas na vida de Joachim se encerra de maneira silenciosa, melancólica, um tanto amarga. Os internos permanecerão os mesmos, sustentando sintomas e traços de personalidade idênticos ao longo do tempo. No entanto, o herói não pode se dar a este luxo, precisando se confrontar, contra a sua vontade, à “normalidade” do mundo fora dali.

O melhor aspecto desse aprendizado vem do contato com a morte. Crescer também significa descobrir que todos morrem, inclusive aqueles que amamos. O roteiro começa com um desconhecido encontrado no gramado (e o menino comemora a descoberta de seu primeiro cadáver). Depois virá o pássaro da família. Em seguida, chegam mortes cada vez mais próximas e significativas na vida do garoto. O amadurecimento equivale à compreensão da finitude, da vulnerabilidade dos seres. Joachim passa de um garoto-pulsão, que brinca, corre e grita, a um adolescente reservado, e um adulto de olhar introvertido. 

When Will It Be Again Like It Never Was Before conta com atuações excelentes, capazes de navegar com simplicidade pelo cenário de loucura sem convertê-la em espetáculo nem exotismo para o nosso olhar curioso. O excelente Devid Striesow sustenta inúmeras ambiguidades no olhar, entre a rigidez da conduta e a fragilidade das emoções reprisadas. No papel da esposa Iris, Laura Tonke transparece, cena após cena, um desacordo crescente com o marido amado. A cena de dança com o filho, quando Richard está ausente, representa a possibilidade de extravasar os sentimentos guardados.

A experiência se encerra sem dizer ao espectador o que sentir, nem o que pensar daqueles personagens e de suas atitudes. Não há uma moral na conclusão, o que nos afasta da estrutura fabular, e também da impressão de “filme de férias”, nos quais se costuma tirar algum aprendizado valioso ao final. Heiss convida o espectador a acompanhar aquela realidade de perto, como se fosse um membro suplementar da família (ou do hospital psiquiátrico), vendo-os crescer, envelhecer, mudar. Somos estimulados a nutrir a mesma sensação de afeto por eles que os personagens nutrem uns pelos outros. Há muito a extrair desta jornada, mas o trabalho caberá ao espectador, a partir de um farto banquete de estímulos e situações — como ocorre apenas nos belos filmes.

Quando Finalmente Voltará a Ser Como Nunca Foi (2023)
8
Nota 8/10

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