“Nada supera a pureza das crianças e dos loucos”. A frase popular imputa às pessoas desprovidas de razão (os loucos) e de conhecimento (as crianças) a capacidade de permanecer sincero, verdadeiro, em meio a uma sociedade que se supõe destruidora de tais virtudes. O preceito parte do mito do bom selvagem: o homem nasceria bom, até ser corrompido pelo meio. No caso, o fato de pessoas com distúrbios mentais serem privadas de uma plena compreensão do mundo as manteria, de certa forma, num estágio de eterna infância.
Estas reflexões ajudam a pensar sobre a comédia dramática alemã onde as duas esferas convivem de modo quase indissociável. Josse (Arsseni Bultmann, na adolescência) cresce entre as alas de um hospital psiquiátrico, pois seu pai, o diretor da instituição, mora no próprio estabelecimento. O garoto está acostumado a presenciar surtos, tentativas de suicídio, tiques, manias, dificuldades de comunicação. Ele se torna amigo do sujeito emudecido com um sino nas mãos; além da garota impulsiva, da outra depressiva, e assim por diante.
O pequeno herói consiste numa síntese entre razão e loucura. Familiarizado com termos médicos e respeitoso diante das crises alheias, ele mesmo manifesta ataques incontroláveis de raiva, quando grita a plenos pulmões. O menino somente se acalma quando colocado sobre a máquina de lavar, chacoalhando de um lado para o outro. Os irmãos mais velhos, pouco interessados no mundo de enfermeiras e medicamentos, consideram que Joachim deveria estar internado com eles. Em duas oportunidades, o menino será confundido com um dos internos.
O ponto de vista único faz com que o longa-metragem narre o mundo por uma perspectiva de estranhamento, como se o herói não fizesse parte dele. Situações normais — uma conversa, o flerte com a menina bonita, o deslocamento da casa para o trabalho — se convertem em aventuras ressignificadas pela presença dos pacientes ao redor. Estes últimos almoçam e tomam café junto ao diretor Richard (Devid Striesow) na casa dele, que se torna uma extensão da clínica. Nesta adaptação do livro Quando Finalmente Voltará a Ser Como Nunca Foi, de Joachim Meyerhoff, não há limite entre espaços público e privado, ou entre o individual e o coletivo.
O absurdo das interações se prova responsável por um humor discreto e respeitoso. O espectador jamais é convidado a rir dos loucos, nem de sua diferença em relação à “normalidade”. Pelo contrário, há evidente empatia e afeto por estes personagens.
Logo, o ambiente excepcional para a criação de crianças se torna algo próximo das experiências radicais de coletividade na natureza, sem regras (ou com regras atenuadas), onde todos compartilham tudo e se permitem expressar sentimentos e desejos em liberdade. Esta microcomunidade representa um “espaço seguro”, nos termos comuns à psicologia popular de hoje. Quando todos são loucos, ninguém realmente o é — isso inclui as obsessões do pai com o desempenho profissional, e da mãe com a Itália, onde reside o verdadeiro amor de sua vida.
O absurdo das interações se prova responsável por um humor discreto e respeitoso. O espectador jamais é convidado a rir dos loucos, nem de sua diferença em relação à “normalidade”. Pelo contrário, há evidente empatia e afeto por estes personagens, de modo que apenas os pilares da sociedade tradicional serão ridicularizados: a monogamia, a fidelidade, a expectativa de virgindade, o respeito aos prefeitos e governadores. Estão ausentes a religião, as escolas e demais locais de convivência institucional. Apartados da realidade contemporânea, podemos observar a distância em relação deste contexto à nossa própria sociedade.
Logo, os deslocamentos de sentido se abrem a provocações da ordem do realismo fantástico. A diretora Sonja Heiss permite pequenos parênteses nos quais a diferença se traduz em fonte de maravilhamento. Por isso, um laço jogado aos ares parece voar lentamente até as mãos de Josse, e um quarto comum se converte num gigantesco aquário. Richard caminha até a clínica num carro imaginário, conduzido por um dos pacientes. “Não vai pegar carona hoje?”, pergunta ao filho, com toda a seriedade e serenidade do mundo. O absurdo, aqui, nasce do fato de não ser considerado como tal. A loucura perde qualquer forma de julgamento moral.
Enquanto isso, o roteiro demonstra a delicada passagem à fase adulta neste meio tão acolhedor quanto extremo, no que diz respeito ao contato com sentimentos. Crescer equivale a descobrir que o amor dos pais um pelo outro não é incondicional, que a virtude do pai possui suas falhas, que a mãe generosa pode estar à beira do colapso. O filme desenvolve com carinho a percepção gradativa de que entrar no mundo dos adultos implica em perder qualquer forma de idealização sobre suas qualidades e capacidades. Adultos são aqueles que falham, que gritam, que se contradizem.
Aos poucos, o real se impõe duramente sobre a aventura onde tudo era possível. Começando pela jornada alegre à praia, onde a água no umbigo do pai determina o tempo de permanência na água (enquanto o umbigo estiver molhado, o filho pode se divertir), o narrativa que atravessa décadas na vida de Joachim se encerra de maneira silenciosa, melancólica, um tanto amarga. Os internos permanecerão os mesmos, sustentando sintomas e traços de personalidade idênticos ao longo do tempo. No entanto, o herói não pode se dar a este luxo, precisando se confrontar, contra a sua vontade, à “normalidade” do mundo fora dali.
O melhor aspecto desse aprendizado vem do contato com a morte. Crescer também significa descobrir que todos morrem, inclusive aqueles que amamos. O roteiro começa com um desconhecido encontrado no gramado (e o menino comemora a descoberta de seu primeiro cadáver). Depois virá o pássaro da família. Em seguida, chegam mortes cada vez mais próximas e significativas na vida do garoto. O amadurecimento equivale à compreensão da finitude, da vulnerabilidade dos seres. Joachim passa de um garoto-pulsão, que brinca, corre e grita, a um adolescente reservado, e um adulto de olhar introvertido.
When Will It Be Again Like It Never Was Before conta com atuações excelentes, capazes de navegar com simplicidade pelo cenário de loucura sem convertê-la em espetáculo nem exotismo para o nosso olhar curioso. O excelente Devid Striesow sustenta inúmeras ambiguidades no olhar, entre a rigidez da conduta e a fragilidade das emoções reprisadas. No papel da esposa Iris, Laura Tonke transparece, cena após cena, um desacordo crescente com o marido amado. A cena de dança com o filho, quando Richard está ausente, representa a possibilidade de extravasar os sentimentos guardados.
A experiência se encerra sem dizer ao espectador o que sentir, nem o que pensar daqueles personagens e de suas atitudes. Não há uma moral na conclusão, o que nos afasta da estrutura fabular, e também da impressão de “filme de férias”, nos quais se costuma tirar algum aprendizado valioso ao final. Heiss convida o espectador a acompanhar aquela realidade de perto, como se fosse um membro suplementar da família (ou do hospital psiquiátrico), vendo-os crescer, envelhecer, mudar. Somos estimulados a nutrir a mesma sensação de afeto por eles que os personagens nutrem uns pelos outros. Há muito a extrair desta jornada, mas o trabalho caberá ao espectador, a partir de um farto banquete de estímulos e situações — como ocorre apenas nos belos filmes.