Novembro (2023)

O sentido da vida e outras delicadezas

título original (ano)
Novembre (2023)
país
Canadá
linguagem
Documentário
duração
94 minutos
direção
Iphigénie Marcoux-Fortier, Karine van Ameringen
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Talvez não exista vida após a morte, pensa um rapaz jovem e ateu, que dorme pelas ruas de Montreal há 12 anos. Ele se considera humanista — o que não significa um menosprezo pelos animais, como insiste em sublinhar. A vida seria mais tranquila caso pudesse se vestir de mulher como sempre quis, revela um homem heterossexual e cisgênero, que acaba de romper o relacionamento com a mulher de seus sonhos. O paraíso e o inferno soam igualmente indesejáveis, reflete um sapateiro que despreza o conceito de eternidade. Mesmo assim, estima que talvez encontrasse mais pessoas interessantes no inferno.

Novembro parte de uma curiosa investigação, tão singela quanto grandiosa. O longa-metragem se equilibra neste contraste doce e tragicômico entre questões de natureza profunda e pequenos atos do cotidiano. A noção de uma obra filosófica e existencial pode assustar muitos espectadores que talvez esperem um teor pretensioso, pedante. Pelo contrário, a abordagem dificilmente poderia ser mais simples do que aquela praticada pelas cineastas Iphigénie Marcoux-Fortier e Karine van Ameringen, que dialogam com anônimos enquanto estes fazem compras no supermercado, passeiam com os cachorros ou frequentam sessões de acupuntura.

Pratica-se uma política dos afetos e da empatia — um cinema enquanto construção verdadeiramente coletiva.

É surpreendente o teor das interações produzidas pela dupla canadense. O elogio do banal costuma se traduzir em imagens silenciosas e anticlimáticas do dia a dia, bem distantes do que se encontra aqui: confissões íntimas, segredos revelados, ponderações acerca da natureza das coisas. Em paralelo, estas discussões raramente carregam um vocabulário tão acessível e casual — conversa-se sobre a existência de Deus conforte se toma um prato de sopa, ou sobre a solidão nas cidades enquanto se busca algum objeto perdido na garagem. O grande convive com o pequeno; o importante, com o banal; o consequente, com o inconsequente.

De alguma forma, as autoras construíram intimidade suficiente com o painel de vinte e poucas pessoas para que elas se abram sem freios, e também sem vaidades. Nota-se uma coesão ímpar na abordagem: ninguém utiliza o dispositivo enquanto oportunidade de fama, e tampouco cria uma versão espetacular de si próprio. O dispositivo cinematográfico se encontra tão próximo quanto invisível, incapaz de constranger ou alterar a dinâmica natural à sua frente. A imagem se posiciona à proximidade dos rostos e dos corpos, colada à unha sangrenta da garota ansiosa, que as rói sem parar, e ao piano do Papai Noel que entoa uma música triste sobre a falta de uma pessoa especial em sua vida. Entretanto, nenhuma ação aparenta ocorrer para a câmera.

Embora os personagens sejam cuidadosamente encontrados e enquadrados, o filme se mostra pronto a escutar o que tenham a dizer, enquanto continuam seus afazeres — as obras de arte a finalizar, o artesanato a preparar, caminhões de lixo a dirigir. É a câmera quem se adequa ao mundo, ao invés de o mundo se moldar às vontades da câmera. O ponto de vista da direção se torna humilde, porém nunca submisso: as diretoras claramente induzem certos temas e se organizam de modo a captar qualquer movimentação decorrente do mesmo. Trata-se de uma direção atenta, parceira e cúmplice, oposta ao mero observador de pretensões objetivistas.

A este propósito, impressiona a empatia e o carinho demonstrados por estes anônimos, apesar da ausência de recursos sentimentais. A primeira canção da trilha sonora surge perto do final, para acompanhar a vida musical do Papai Noel. As confissões jamais se encaminham ao choro, nem à catarse. A direção de fotografia opta por um preto e branco elegante e frio como a cidade de Montreal, sem arroubos de vaidade estetizante. A montagem confere tempo para que as pessoas riam umas das outras, se provoquem, se escutem. Juntas, representam o “nosso esmagador desejo de estar juntos”, conforme atesta uma frase nos muros da cidade.

Por fim, estes seriam os temas capazes de unir conversas tão vastas quanto complexas: a solidão, a depressão, a necessidade de encontrar sentido na vida e tecer laços de comunhão — seja com Deus, Alá, a natureza, o marido, os filhos ou os cachorros. Novembro, segundo as autoras, seria um mês de frio rigoroso na cidade, embora antes da chegada da neve. Este equivaleria ao período de mais casos registrados de depressão e tentativas de suicídio no Canadá. Logo, a morte se torna um horizonte inevitável nas conversas, às vezes de maneira leve e bem-humorada, às vezes com certo pesar e melancolia.

“Eu fui triste a vida inteira. Mas não pessimista”, ressalta um homem, com notável senso crítico e de distanciamento a respeito de si próprio. “Eu rezo para ela [minha filha], porque a morte é uma segunda vida”, explica a mãe que dedica horas diárias a rezar diante do altar de santos. “E se eu me apaixonasse por alguém no trânsito?”, indaga a garota sonhadora, imaginando um afeto súbito e reparador. O longa-metragem está recheado de momentos de igual beleza e tristeza, quando o espectador escuta confissões humanas de fácil identificação, porém poucas vezes verbalizadas com tamanha naturalidade no cinema.

A montagem costura essas visitas na forma de um cinema de fluxo, saltando de um olhar ao próximo, de um apartamento ao seguinte, e evitando voltar ao mesmo local, posto que há mais pessoas a conhecer. O ritmo nunca se apressa, nem se arrasta: Iphigénie Marcoux-Fortier e Karine van Ameringen são avessas à urgência, em se tratando de conversas tão confortáveis. Elas praticam algo semelhante à escuta terapêutica, no sentido de condicionar rumos enquanto se recusa a provocar tensões que o interlocutor não esteja disposto a trazer por si mesmo. Cria-se a noção de um espaço seguro, acolhedor e parceiro. 

As autoras não aparentam ser amigas ou conhecidas de nenhum deles. No entanto, proporcionam através do cinema uma forma de conexão inesperada pela qual todos desejam. Em detrimento de uma arte documental sobre pessoas, preferem um projeto com pessoas, junto delas. A direção não se coloca acima nem abaixo dos personagens, e o espectador tampouco é convidado a julgá-los, admirá-los ou a estabelecer qualquer relação de ordem moral e ética. Conhecemos as casas, as tristezas e as opiniões acerca da espiritualidade dessas pessoas que nunca mais veremos. Eles se parecem bem diferentes de nós e, ao mesmo tempo, idênticos a qualquer espectador. Pratica-se uma política dos afetos e da empatia — um cinema enquanto construção verdadeiramente coletiva.

Novembro (2023)
9
Nota 9/10

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