O Astronauta (2024)

Sci-fi da depressão

título original (ano)
Spaceman (2024)
país
EUA
gênero
Drama, Ficção Científica
duração
106 minutos
direção
Johan Renck
elenco
Adam Sandler, Carey Mulligan, Kunal Nayyar, Lena Olin, Isabella Rossellini, Paul Dano
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Julgando por esta produção da Netflix, uma viagem espacial para descobrir as maravilhas do universo não representa uma ideia nada empolgante. Jakub (Adam Sandler) é escolhido para esta missão solo — embora nunca se justifique a viagem de um único tripulante — e, passados seis meses de isolamento, sofre com os dias no interior da nave. Ele dorme mal, diminui a frequência de videochamadas com a esposa Lenka (Carey Mulligan), e apresenta uma aparência cada vez mais melancólica.

O astronauta não é a única pessoa descontente neste longa-metragem. A mulher grávida se sente abandonada, e cogita encerrar o relacionamento. Peter (Kunal Nayyar), que aparentemente cuida sozinho desta expedição ambiciosa, tampouco demonstra qualquer empolgação ou senso de urgência ao papear, de modo protocolar, com Jakub. Em determinado momento, o herói concebe uma monstruosidade, espécie de amigo imaginário semelhante a uma aranha gigantesca para acompanhá-lo na travessia. Adivinhe? Hanus (voz de Paul Dano) também está descontente, nostálgico.

Por este motivo, as conversas ocorrem entre personagens deprimidos, comunicando-se por meio de sussurros e monossílabos. A maioria das produções de estúdio teria equilibrado o tom da mise en scène, contrapondo o desânimo do herói com um sidekick engraçado, ou algum problema urgente a resolver durante a viagem. Mesmo Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019) conseguia trazer um aspecto de perigo iminente face aos dilemas familiares do astronauta. Aqui, no entanto, o viajante espacial será descrito como “o homem mais solitário do mundo”, slogan que ele tem dificuldade de contradizer.

Johan Renck retira da ficção científica a empolgação diante do espaço, o medo do desconhecido, o perigo de uma jornada pioneira. Oferece uma aventura entorpecida, sob efeito de antidepressivos potentes.

Adam Sandler teima em convencer no papel principal — não por inabilidade do ator, mas pela construção insuficiente do protagonista. Nunca se descobre o preparo deste homem para uma missão de tamanha importância, nem o que a descoberta das partículas de uma nuvem rosa significariam para ele. O sujeito jamais demonstra conhecimento específico sobre física, biologia, matemática, nem soa interessado pelos objetivos da viagem. Ele acorda e executa tarefas banais (corre na esteira, toma soníferos) como quem precisasse se deslocar para mais um dia entediante de trabalho no escritório. 

Sua proximidade com a esposa também carece de contextualização. Ambos são vistos em eterna crise, pensando em terminar. No entanto, esquece-se de criar a intimidade responsável pela crença no amor de ambos. O roteiro dedica diversas cenas à destruição de um casamento que nunca construiu em primeiro lugar — e certamente não serão os flashbacks apressados, decorados com distorções óticas, que se encarregarão de uma trajetória plausível juntos. A talentosa Carey Mulligan se vê presa a um dos clichês mais nocivos do cinema de ação: o de “esposa do herói”, que permanece em casa, soturna, representando um motivo para o herói batalhar pelo retorno. A mulher existe somente para que o homem ganhe alguma complexidade — ela está presente em função dele.

Já o cosmonauta se desloca pela aeronave em camiseta e bermuda surradas, e aparenta ter partido sem um único item pessoal para lembrá-lo da Terra. Ao se deparar com a criatura imensa pela primeira vez, apenas se isola no cômodo ao lado, manifestando incompreensível apatia. Johan Renck retira da ficção científica a empolgação diante do espaço, o medo do desconhecido, o perigo de uma jornada pioneira. Limita-se à rotina de um homem de qualidades desconhecidas, profundamente depressivo, e que aparenta nunca se deslocar a lugar nenhum. Como faz falta explorar o tempo e o espaço num filme a respeito do universo!

Outro fator incomoda: a escolha de Sandler e Mulligan para interpretarem duas pessoas da República Tcheca. Mesmo entre si, conversam em inglês — ele, com um sotaque americano, e ela, com a empostação britânica. Estamos numa época em que sotaques são considerados bobagem (sobretudo após duas interpretações pavorosas de italianos por parte de Adam Driver), mas a língua constitui a cultura de uma pessoa, sua noção de pertencimento à casa, à pátria, à família. Por isso, os franceses falando inglês em Napoleão, e os tchecos americanos-britânicos desta produção retiram o espectador ainda mais da pretensa viagem espacial.

Talvez o aspecto mais interessante de O Astronauta derive da construção da criatura gentil, partindo de bons efeitos visuais, e representando uma ajuda ao herói, ao invés de um ataque. Poucas ficções científicas concebem monstros amigáveis, que não se revelam um inimigo perverso no terço final da história. Tal qual o extraterrestre de Spielberg, esta aranha sonhadora descobre os prazeres dos abraços e da Nutella, inexistentes em seu planeta. Materializa-se quando Jakub mais precisa de um interlocutor para conversar — novamente, um personagem que existe para ele

Em termos estéticos, o projeto faz o possível para retirar o caráter espetacular das naves, das estrelas e de fenômenos siderais. A trilha sonora aposta em tons calmos e graves; a montagem faz com que as cenas se arrastem, e uma vez fora do veículo espacial, os supostos fenômenos multicoloridos ainda soam escuros, pouco animadores. Não seria difícil sugerir que a viagem inteira constitui uma metáfora para a separação de um casal, em que a distância literal do marido, impossibilitado de voltar, representa o seu afastamento emocional da esposa.

Mesmo assim, o resultado apresenta uma visão desencantada do cinema de gênero. Renck encontra poucas soluções visuais para fugir ao sensacionalismo, além de apagar as cores, os personagens, os sentimentos, os objetivos. Spaceman (no original) é uma aventura entorpecida, sob efeito de antidepressivos potentes. Pela maneira desajeitada em lidar com personagens e conflitos, remete às primeiras produções da Netflix, como TAU (2018) e I Am Mother (2019), que também usavam companheiros de jornada interestelar para ilustrar o estado de espírito de seus heróis deprimidos.

O Astronauta (2024)
4
Nota 4/10

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