O Canto das Amapolas (2023)

Atenção compartilhada

título original (ano)
O Canto das Amapolas (2023)
país
Brasil, Alemanha
formato
Experimental
duração
107 minutos
direção
Paula Gaitán
elenco
Dina Moscovici, Luise Busse, Cecilia Gil Mariño, Bettina Korintenberg, Maíra Senise, Mark Ansorge
visto em
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Paula Gaitán conversa com a mãe ao telefone. Não enxergamos os rostos de nenhuma das duas. Enquanto relembram o passado da avó europeia e judia, o olhar da cineasta se volta às cortinas que voam para fora da janela, ao jardim percebido através do vidro. Os retratos na parede evocam a época distante, mas outros elementos soam desconectados da ligação, possuindo interesse narrativo e estético próprio: a sombra do vaso sobre a geladeira, os pés de bailarina atingidos por um feixe luminoso.

O Canto das Amapolas segue neste registro curioso, solicitando a atenção do espectador a dois ou mais registros simultâneos e sobrepostos. Aqui, a imagem nunca serve para repetir o som, nem para se opor a ele, ou sequer comentá-lo. Ambos se completam numa dinâmica solta, livre, a exemplo de uma pessoa que atende a uma chamada no celular enquanto efetua outras tarefas diárias. Conforme uma narrativa se desenvolve no passado (via som), outra se aprofunda no presente (via imagem).

Ainda há espaço para interstícios poéticos e atemporais, articulando ambas as tramas ou promovendo respiros entre o passado familiar e a estadia contemporânea em Berlim. A cineasta extrai uma beleza inusitada, quase cômica, do campo de amapolas ao vento, quando o movimento das pétalas remete a um coral de flores cantantes. Neste instante, percebe-se que a linguagem experimental da autora jamais constitui uma finalidade em si, egoica e autocentrada. Pelo contrário, ela parte de uma observação astuta do cotidiano.

Aqui, Gaitán efetua uma de suas obras mais acessíveis e afetuosas. A ausência de rosto de mãe e filha poderia tornar a conversa hermética (vide o efeito prolongado deste recurso em Vermelho Bruto, também presente na Mostra de Tiradentes), no entanto, ambas dialogam com tal intimidade — e humor, com provocações — que o resultado se torna de fácil de identificação. Há um grau de confidência, e entrega sincera de sua intimidade, que rompe com o caráter grave e intelectual do dito “cinema experimental”.

O fluxo de pensamentos traduz um olhar inquieto, que parece pesquisar e perscrutar ao vivo, enquanto o filme se desenvolve.

Além disso, a artista se define, a certo ponto da trama, como uma “caixa de lembranças”. O termo delicado sugere tanto a capacidade de conter e armazenar memórias (seria esta, em última instância, a função das artes visuais?), quanto um aspecto humano, falho, desta coleção que pode ser seletiva, exagerando alguns aspectos e omitindo outros. Assume-se a memória afetiva como material de trabalho, ao invés de fatos e dados. Saberemos se a avó realmente falava todas aquelas línguas? Se percorreu todos os deslocamentos mencionados? Ou por que frequentava a igreja, sendo católica? Pouco importa. Resta a percepção subjetiva do ocorrido.

Enquanto isso, a câmera se ressignifica, produzindo imagens em constante movimento. A câmera desliza por vários cantos e detalhes da casa, efetuando zooms e promovendo uma nova decupagem, dentro do plano, de maneira ininterrupta. O fluxo de pensamentos traduz um olhar inquieto que pesquisa e perscruta ao vivo, enquanto o filme se desenvolve. Gaitán e o co-diretor de fotografia Rodrigo Levy ajustam a luz durante o plano, alteram o quadro, modificam o ponto de vista. A mise en scène não se acomoda nem na contemplação estéril, nem na alternância frenética de cortes (o que também poderia ser considerado uma forma de acomodação).

O Canto das Amapolas produz, portanto, uma sinfonia de registros díspares, inesperados, que exigem um espectador atento, mas jamais tentam aliená-lo. Na cena final, duas trilhas sonoras se desenvolvem em simultâneo, provocando-se (e provocando o público). Em parte da conversa, um forte barulho das ruas invade a captação sonora, sendo assumido e incorporado à mixagem. Depois, a aproximação de um fotograma-slide faz com que a câmera “entre” na imagem e revele a copa das árvores em movimento. De repente, o fotograma se converte numa imagem em movimento, reunindo fotografia e cinema num único corte.

Há outras metáforas de destaque, sobretudo no que diz respeito à representação do feminino. Esta é a história de três gerações de mulheres – mãe, filha e avó – discutindo suas origens, seus corpos, suas culturas e línguas. Atrizes jovens são utilizadas em interações com a natureza, articulando-se com as três confissões sonoras, porém sem encenarem de maneira estanque qualquer uma das três. Os fragmentos no rio e na floresta, correndo ou descansando, equilibram a velocidade das conversas, repleta de atropelos e farpas amigáveis. “Ela era mais independente do que você”, provoca a filha, ao que a mãe responde com a cobrança de um vestido emprestado e nunca devolvido. 

O longa-metragem se encerra num recurso à filosofia e à estética, quando a voz da mãe, já envelhecida, reivindica o direito à própria ficção. Cavalos azuis não existem, mas quando Chagall os pintou, passaram a existir, ela justifica. É lindo que parta desta senhora, ao invés da filha cineasta, a exigência de um direito à criação de conceitos e obras. A autonomia feminina passa também pelo posicionamento destas personagens enquanto pensadoras, críticas de suas respectivas épocas e cientes da posição que ocupam em sociedade.

Paula Gaitán responde ao direito de ficção com um dever de ficção. “Sabia que teria que fazer um filme em Berlim, um reencontro com minha mãe”. A artista descreve sua arte enquanto uma imposição externa, uma forma de acertar as contas com sua história e com a vida ao redor. O tema a procura, tanto quanto ela o escolhe. Em oposição aos cineastas que insistem para que o mundo caiba em suas ideias prévias, existem as cineastas para quem o cinema se molda ao mundo ao redor. Na abertura ao outro, aos espaços, países, línguas e corpos, reside a beleza desta obra.

O Canto das Amapolas (2023)
8
Nota 8/10

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