One Fine Morning (2022)

O turbilhão da vida

título original (ano)
Un Beau Matin (2022)
país
França
gênero
Drama, Romance
duração
112 minutos
direção
Mia Hansen-Løve
elenco
Léa Seydoux, Melvil Poupaud, Pascal Greggory, Nicole Garcia, Camille Leban Martins, Sharif Andoura, Elsa Guedj, Kester Lovelace
visto em
Festival de Toronto 2022

“Nós nos conhecemos / Nós nos reconhecemos / Nós nos perdemos de vista / E nos perdemos de vista de novo / Nós nos reencontramos / Nós nos esquentamos / Depois nos separamos / E cada vez, começava de novo / No turbilhão da vida / E continuamos a rodar / Os dois entrelaçados / Os dois entrelaçados / Os dois entrelaçados”. A canção Le Tourbillon de la Vie, entoada por Jeanne Moreau no clássico Jules e Jim: Uma Mulher para Dois (1962) ajuda a pensar este cinema francês bastante nostálgico em relação aos romances do passado.

Aliás, One Fine Morning sustenta o imaginário popular do cinema francês, em seu melhor e pior aspectos. Por um lado, a diretora Mia Hansen-Love possui um controle invejável de mise en scène, dos atores, do uso de luzes, tempos e espaços, provocando um verdadeiro deslumbramento. Por outro lado, tamanha maestria se dedica a uma história frívola de amores combinados e recombinados entre um núcleo abastado que lê Goethe, traduz poesia alemã e disputa a herança da coleção de filosofia do pai. Em outras palavras, trata-se das pequenas alegrias e minúsculas tristezas de um núcleo burguês na França contemporânea.

Na trama, Sandra (Léa Seydoux) exerce a professão de tradutora e intérprete do alemão para o português. Ela cuida sozinha da filha pequena, além do pai que sofre de uma doença degenerativa rara e perdeu sua autonomia. Entre as obrigações diárias de comparecer a palestras e buscar a garota na escola, reencontra Clément (Melvil Poupaud), um antigo namorado, hoje casado. Apesar dos inconvenientes desta configuração, iniciam um caso escondido. A heroína constitui, portanto, uma mulher em perpétuo movimento: a vasta maioria das cenas consiste em suas caminhadas pelas ruas, entradas e saídas do metrô, abrindo e fechando portas de apartamentos e escritórios.

O roteiro adota uma estrutura rígida, no sentido de seguir fielmente o olhar e o corpo desta mulher. Sandra ocupa a integralidade das imagens, porém alterna a companhia dos coadjuvantes, na relação de uma cena por personagem. Assim, possui uma cena com a filha; corte da montagem; está se encontrando com o namorado; novo corte; frequenta o pai doente; mais um corte; retorna aos cuidados com a filha, e assim por diante. A montagem funciona como um metrônomo, levando a jovem adulta a diversos núcleos e bairros, onde cumpre suas intermináveis funções sem reclamar do cansaço, da falta de dinheiro, nem do infortúnio relacionado à saúde do pai e ao estado civil de Clément.

A delicadeza do drama francês reside no comedimento das cenas, que se interrompem no exato segundo em que as emoções afloram, privilegiando interações cotidianas a grandes instantes de catarse.

Nas mãos de um cineasta menos experiente, esta sucessão cartesiana de visitas soaria protocolar, robótica. Ora, Mia Hansen-Love consegue impregnar a narrativa com delicadeza, no sentido estrito do termo. O senso comum costuma identificar o delicado com a fraqueza, ou com um imaginário rosado, florido, estereotipado. A delicadeza do drama francês reside no comedimento das cenas, que se interrompem no exato segundo em que as emoções afloram, privilegiando interações cotidianas a grandes instantes de catarse. A cineasta prefere filmar seu elenco saindo de uma sessão de cinema e comentando o filme, a retratar choros e gritos. (Pense no exato oposto do cinema de Xavier Dolan, por exemplo).

Deste modo, os inúmeros saltos temporais se fazem imperceptíveis e orgânicos. O espectador pode demorar até perceber que a vida de Sandra é acompanhada ao longo de várias estações, posto que nenhum letreiro ou diálogo o anuncia. No entanto, o desenvolvimento das relações amorosas e familiares carrega a aparência de naturalidade, quase uma inevitabilidade. O pai é internado numa clínica, depois em outra clínica. O casal se afasta, se reaproxima, se separa de novo, se une mais uma vez. A filha apresenta episódios de estranhamento quanto ao namorado da mãe, alternados com outros, de afeto intenso. A vida segue, apenas, e nenhuma cena aparenta mais forte, mais chamativa do que a anterior. A surpreendente linearidade jamais se traduz em tédio, nem esgotamento por repetição.

O elenco interpreta estes personagens com aparência de pouco esforço. Ao invés de trabalhos de composição maneiristas e muito demarcados, incluindo transformações intensas de voz, olhar e postura corporal, Léa Seydoux, Melvil Poupaud e Nicole Garcia encarnam figuras que já interpretaram inúmeras vezes no cinema francês: os amantes passageiros, a mãe um pouco amargurada, a família que implica entre si, porém se ama. Há um esforço notável para criar um núcleo médio, passível de identificação com qualquer espectador, apesar da formação intelectual fora do comum. Nenhum conflito permanece durante muito tempo: a pequena briga já terá sido esquecida na cena seguinte; uma provocação resulta inconsequente. Existe um ar imperturbável na vida da heroína: nada a transforma de fato. Os acontecimentos de sucedem ao seu redor, ocorrendo a ela, porém a tradutora efetua poucas guinadas por conta própria. A vida se impõe aos personagens meio lânguidos, que se deixam levar pelo acaso.

Esta configuração pode despertar a impressão de um cinema desafetado, blasé. O belíssimo trabalho de fotografia, com cores saturadas e granulação próxima à película antiga, ajuda a afastar este retrato da nitidez demarcada das produções digitais contemporâneas (caso das obras originais da Netflix, para citar o caso mais explícito). Aqui, há texturas, cores, volume, profundidade de campo e muitos sons ao redor, seja na rua, nos carros que passam, nas conversas no parque. Resta questionar se tal efeito possui um papel forte na construção do naturalismo, ou se constrói uma espécie de cinema decorativo, onde o mundo se converte em diferentes papéis de parede para os desfiles da protagonista por Paris.

Além disso, fala-se sobre amor, o tempo inteiro, em frases de efeito dotadas de uma elaboração intelectual pomposa. Frases como “Você tem o direito de amar e ser amada” exemplificam esta escrita de diálogos em modo Je t’aime moi non plus, quando os personagens se amam, se detestam, e fazem questão de verbalizá-lo na cama, nus, acariciando-se e questionando filosofia ou cosmo-química. Hansen-Love resgata da fase inicial da Nouvelle Vague esta configuração do mundo-umbigo, onde existem problemas ao redor, mas nada se torna mais importante do que as discussões dos protagonistas a respeito do afeto que recebem ou entregam aos demais.  

One Fine Morning será interpretado como um cinema nostálgico ou anacrônico, a gosto. A diretora, antigoa crítica de cinema na Cahiers du Cinéma, conhece suas referências, e sabe empregá-las sem apagar seus traços pessoais. Ela também faz questão de situar a jornada numa Paris contemporânea, incluindo críticas à gestão do presidente Emmanuel Macron. Entretanto, pinta uma sociedade leve, etérea, branca, que concilia trabalho, família e amor sem nenhuma dificuldade de fato. Não há problemas reais de dinheiro, nem louça para lavar. O mais importante aqui são as discussões sobre amar e ser amado, nas quais se incluem o relacionamento com namorados, irmãos, pai e mãe.

One Fine Morning (2022)
7
Nota 7/10

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